domingo, 17 de outubro de 2010

Guardar

Pensei em escrever tantas coisas! Sempre muito, um exagero (quem me dera experimentar a medida de sua contenção: seu altivo contentamento solitário).  E justamente por isso, para evitar que me perdesse em um jogo de palavras mortas ensaiei essa carta tentando perceber o que havia de importante ainda a dizer já que, em nossas longas conversas, havíamos nos contando tanto um para o outro. Nesses ensaios busquei guardar uma palavra, algumas talvez, mas poucas, de tudo isso que sinto – elas haveriam de bastar, haveriam de honrar o meu afeto.

Ausência e presença foram as primeiras palavras que guardei de nós. Em dias ou noites, a cada lembrança sua que me visitava sem licença eu fechava os olhos, inspirava o ar devagar e profundamente. Como uma espécie de salvamento eu buscava o ar tentando não me afogar num mar de ausência – esse mar que sempre habitei. Mas essa ausência é muito maior do que eu, ou você, e por isso não cabe que fale dela aqui. Acho que ninguém pode guardar a ausência, o que não se foi, o que não se viveu.  Assim entendi que não é de ausência que preciso porque muito, muito mais precisa e bonita é sua presença em mim.

Querido,  guardo sua presença doce e cuidadosa, suas tantas manhas deliciosas que me fazem rir! Guardo o desejo de soprar seus cílios para acordar o menino dos seus olhos, guardo a vontade de beijar você e quem sabe livrar do abandono alguma palavra esquecida no canto da boca.

Claro que você notou o abuso da palavra guardar. Nem ausência ou presença, talvez, seja essa a palavra mais importante dessa carta. Porque, penso, não valha tanto o que se guarda: uma lembrança, desejo ou bilhete, mas antes, como se guarda o que se guarda – o sentido de guardar. Eu tenho um, que roubei de um músico poeta e que ofereço a você: guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela.

A mim não importa o que será de nós: uma grata e cúmplice amizade (de segredos trocados de uma vida inconfessa) ou um amor possível (de encanto sincero). Que nenhuma esperança nos encerre! Porque eu mesma não espero, apenas tento saber reconhecer e guardar quem e o que no meio do inferno, não é inferno, e assim, acompanhada, abro espaço para a vida acontecer. Meu pedido, meu convite é pra te acompanhar. Do jeito que puder ser, do jeito que a gente quiser.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Encontros, conversações

Mais uma carta.
No dia 13 de abril Helena, querida amiga e eu participamos de uma mesa-redonda no Centro Cultural Banco do Brasil sobre Arte Urbana. O mote do debate foi a exposição Ossário, do artista plástico Alexandre Orion – que eu já conhecia e admirava de outros carnavais. Fizeram parte da mesa Alexandre, José de Souza Martins, professor da Faculdade de Filosofia da USP e Valéria Virgínia Lopes, doutora em Educação pela USP.
Na volta pra casa Helena e eu conversamos muito, coisas tão legais! Estávamos alegres pelo encontro. Mas nosso papo teve que ser interrpompido quando Helena desceu do ônibus num ponto da Rebouças. Continuei essa conversa no caminho para casa e ainda depois. Parecia que eu sobrava em mim. Em casa comecei uma carta que depois enviei a Alexandre, carta que agora compartilho - desejo de que a conversa não se acabe...

Querido Alexandre
Gostaria de conversar com você sobre o encontro de ontem. Preciso lhe dizer que gostei muito, mesmo. Me fez pensar, e isso é muito bom, especialmente nos dias que correm.
Bom, se me permite, vou contar um pouco do que vi....
No pequeno tablado vi o artista que sofre os efeitos de sua ação no mundo, como se a obra (e suas dobras) se abatessem sobre ele, inventando-o também...
Vi a professora, sutileza de gesto, delicadeza de voz, que se inquieta e se encanta com a cidade e suas questões e que guarda na dúvida um território para o pensamento (pensei que ela talvez pudesse gostar da frase: “as respostas são a má sorte das perguntas”).
Vi também o professor, que com rigor teórico e fôlego analítico, convoca-nos a pensar numa cidade ainda por fazer-se (inspirado, talvez, pelo o "ar da cidade liberta").
Tudo isso pra dizer que ontem foi muito legal, dizer da minha alegria em ouvi-lo contar de seu percurso como artista e morador dessa cidade maluca, enfim, pra dizer que me senti acompanhada!
Companhia que tem a ver com certa cumplicidade, certa crença de que a invenção é potência do homem, do homem comum, não é prerrogativa dos gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência; fé na aposta de que a cidade é o lugar no qual todos podemos e devemos afirmar nosso amor mundi, ou seja, nosso compromisso ético e generoso com o mundo que herdamos e que legaremos aqueles que virão depois de nós.
(...)
Você deve ter percebido que insisto na palavra encontro. Porque os encontros nos salvam, nos livram da solidão, do desamparo, encontros que podem ser entre pessoas, e também entre pessoas e idéias, lugares ou coisas... Por isso mesmo quero te contar uma última história (prometo que logo acabo essa carta, já me desculpando por ser tão longa...)
Quando penso na palavra encontro sempre me vem à lembrança uma conversa com meu filho Pedro, na época com cinco anos. Estávamos a caminho da escola quando ele me perguntou “Tá longe mãe?” “Não, filho, fica na próxima esquina”. Um breve silêncio e a pergunta: “O que é esquina, mãe”? “Esquina é quando duas ruas se encontram”. E, para meu espanto e encantamento, Pedro me disse: “Como os namorados, mãe”?
Pois é, segundo Pedro, “esquina são duas ruas que se encontram, enamoradas”. Então se esquina é o encontro enamorado entre dois caminhos, os encontros seriam as pontes enamoradas do pensamento (certa vez li em algum lugar, não me lembro aonde, que a mais bela ponte do mundo é distância entre um olhar e outro...)
Não importa em qual ponto da cidade estejamos, desse ou do outro lado da ponte, o mais importante é o encontro porque ele é a ponte que dá passagem – passagem ao pensamento enamorado do mundo. Lenine cantou que é desse jeito que se sai da ilha. Eu também acho.
Grata pela companhia e pelo encontro
Com admiração e carinho
Aline.
Ps.: Escandalosa, absurda, bonita, feia, egoísta, acolhedora... a cidade é tão, tão larga e tão intensa que a gente precisa mesmo de ajuda pra olhar. Ossário, Metabiótica, a conversa desdobrada disso tudo tudo me ajudaram a olhar, olhar a cidade. Para Eduardo Galeano essa é umas das funções da arte:
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
Me ajuda a olhar!"

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O Notável Caso da “Senhorita L.”


(Nada inédito, por ora. O texto que segue foi escrito em 2007, no contexto de um projeto no qual estava trabalhando no Cenpec. Previsávamos de algo que falasse da escola, especialmente da relação professor e aluno. Alguém indicou um artigo da década de 80 que apresentava resultado de uma pesquisa realizada com alunos de uma escola americana. Me incomodou, no entanto, o tom do texto: formal demais, moralista... Pedi, então, permissão para reescrevê-lo com o compromisso de que manteria a idéia principal, com a qual concordava. O resultado agradou ao grupo e a mim também).


Não amarás o próximo como a ti mesmo, porque o amor não tem limites, nem extremidades, muito menos conformação, mas fará da tua simples natureza amorosa uma enseada que salva.
Thiago de Mello

Era uma vez uma professora notável. Seu nome era Senhorita L.
A Senhorita L. dava aulas para a primeira série de uma escola pobre, de um bairro pobre, de um pobre país rico há 30 anos. Certa feita, Senhorita L. deixou bromélias, azaléias, ervas daninhas e Cão, seu cachorro-escudeiro, e resolveu sair à busca dos seus alunos.
Encontrou Carlito, um carrinho de bebê e um banco de praça. O olhar de Carlito atravessou os olhos de Senhorita L., fazendo seu corpo girar num rodopio mágico. Foi a mesma sensação de enlace e enlevo com Francis, naquela valsa há 25 anos, a única e verdadeira valsa que ela teve na vida. O olhar de Carlito fez Senhorita L. visitar sua juventude. Ela se sentia Peggy Sue...
— Senhorita L.!
Um abraço, poucas palavras. Depois de Carlito, vieram muitas outras memórias. Sempre envelhecemos e vamos envelhecer mesmo que não tenhamos vontade – ela sentia.
Carlito sabia de alguns colegas da 1ª série dos quais não perdera a amizade. Senhorita L. pediu que se reunissem para um encontro. Neste dia celebraram diferentes modos de nascer e morrer, falaram das escolhas que deram certo e das contingências que fizeram do caminho de alguns a estrada mais bela que um passo torto e perdido poderia encontrar. De todos, pode-se dizer, com certeza, tornaram-se homens e mulheres, que honravam a vida acima de tudo como homens e mulheres que honravam a mãe, o pai, a flor, a criança e o velho. Havia cuidado e generosidade neles. Alguns declaravam seu cuidado em atos de amor e gentileza. Outros doavam sua generosidade numa atenção distraída e num meio sorriso pálido que insistia em incomodar uma dureza de rosto modelado a força por vencer a vida numa luta de braços. Todos os seus alunos, habilidosos em cantar a tabuada, modestos ou brilhantes nos versos de Quintana, aprenderam a mais sutil e útil das lições: para aprender os caminhos há que se decorar muito bem os erros...
Era uma longa mesa e Senhorita L. se lembrou de uma outra que não era sua, e sim de Drummond. Uma linda poesia chamada “Mesa” que contava de um encontro de família. Drummond era um poeta generoso, que sempre a socorria quando ela já não bastava em si mesma ou se sentia pouco demais para existir...
Esta é apenas uma história de encontros. Um encontro de uma velha professora com pessoas de carne e osso que, por uma possessão infantil – como quando a gente quer agarrar e guardar uma bolha de sabão – ela continua a chamar de seus alunos. Mas de bolha de sabão só se guarda o efeito das cores e do brilho em movimento. Também por isso melhor se guarda um vôo de um pássaro do que um pássaro sem vôos, isso quem escreveu foi Antonio Cícero, outro poeta companheiro de estrada de Senhoria L.
Um dos seus alunos, também professor e pesquisador, resolveu publicar esta história dando-lhe os solenes ares da ciência. Mas a senhora L. não queria provar nada a ninguém. Só saiu em busca dela mesma, e se estendeu como um território imenso onde todas as crianças que foram suas e sempre serão, brincaram. Para cada uma delas Senhoria L. fez um país.
E a conclusão da pesquisa de seu aluno pesquisador foi:
(...) Todos os seus alunos lembravam-se dela, mesmo 20 ou 30 anos mais tarde, enquanto que os outros adultos que haviam tido outros professores na primeira série não lembravam do nome ou de qualquer coisa a respeito de seu professor.
Se as crianças são suficientemente afortunadas para começar a sua escolarização com um professor otimista, que espere que elas se saiam bem elas provavelmente se desempenharão melhor do que as crianças que foram expostas a um professor que transmite um desencorajamento e uma percepção de autodesvalorização.
Senhoria L. ficou feliz ao ler o trabalho. Afinal, Pedro havia sido seu aluno. Ficou feliz por ter sido aprovada como professora.
Em seguida chamou seu Cão para brincar um pouco.


(Livremente inspirado no livro: A Criança em Desenvolvimento - 3 edição.Helen Bee, Editora HABRA Ltda. 1986)

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A mina


À Maju, pelo seu aniversário

Se Lula é o cara,  Maju é a mina.
E não se trata de abreviação de menina, muito menos de mulher abreviada. Mina de atalhos, a mina Maju mora entre a partida e a chegada, o não e o sim, a faca e o queijo, o beijo e o coração partido.
Garimpeiros de plantão ou sonhadores desavisados todos já pensaram seus mistérios. Diz-se que a matéria da qual é feita e que também é fonte vai nos salvar das coisas ordinárias, nos livrar da mundanice e nos tornar especiais. Esse é o segredo da mina: seu poder de metal e sua força de pedra.
Sigam seus atalhos, mas caminhem por seus próprios desvios a risco de perderem-se e de nunca encontrá-la. Mas ao encontrá-la a mina é puro deleite: energia e calor e raro esplendor precioso.

Ao chegar não se espantem demais. Reza a lenda que a mina guarda a maldição do susto: ou há susto ou surto. Disso ninguém está livre - nem a mina tampouco quem a desbrava. A potência da pedra e a raridade do metal também não se dobram ao laço, ou se abrem a faca – indica-se delicadeza no trato, sutileza no contrato. Responder ao susto com violência ou desesperar-se pode por tudo a perder.
Cuidem da mina, façam grandes investimentos, vale a pena. Apenas cautela no domínio, não comprem seguros ou cofres para poupar a exclusividade – ela com certeza secará. O que se permite preservar, duplicar, vender ou emprestar é da ordem da mina, porque só ela cabe a si mesma.






quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Eu vi o rei chegar



À mim, pelos 30 anos.

Eu vi o rei chegar. No Ginásio do Ibirapuera entre quase dez mil pessoas eu vi o rei chegar. O rei e suas flores que pacientemente esperavam a hora de voar nas notas de Jesus Cristo, canção que encerra o show de Roberto Carlos. Eu vi o rei chegar e Jesus também ter visto porque o rei mesmo avisou: Jesus Cristo eu estou aqui!

Eu vi o rei chegar. E ouvindo as canções que ele fez pra mim, fechei os olhos pra não ver passar o tempo. Mas, sabemos, o tempo não para, a claridade não se repete, a vida estala uma única vez. Há trinta anos que o tempo passa ao mesmo tempo em que me acompanha diligentemente sem nunca reclamar.

Quando eu estou aqui, inspirada pelo tempo e por tantas emoções eu vivo mais uma vez esse momento lindo. Gosto de viver cada aniversário como quem celebra tudo que o tempo é capaz de dar, tempo-presente que nunca se adianta nem se atrasa, mas que acima de tudo canta em coro pra que eu me convença: se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi.

Conheci o rei Roberto Carlos numa época em que o tempo era criança igualzinho a mim. A gente brincava, o tempo e eu, antes de existir o segundo, minuto, dia ou ano. Ainda não sabíamos contar. Foi assim até a chegarmos a escola, mas isso é outra música...

O rei cantava o dia todo só para mim. Naqueles tempos ele usava umas roupas engraçadas, não importava a cor, mas sempre com manchas de óleo e graxa. Vivia às voltas ou sob carcaças de antigos carros – tesouros caindo aos pedaços! Mas o rei gostava assim, era seu mundo Calhambeque bi-bi (Bi Bidhu! Bidhubidhu Bidubi!...)

Ele vestia calças que lambiam o chão. Abaixo da cintura, a calça de sarja ou brim agarrava firmemente o contorno de suas pernas até o joelho para então ir libertando sinuosamente sua boca volátil, boca dançante! Tinha um cabelo alegre que gostava de brincar - caracóis serelepes que saltitavam delicadamente quando ele caminhava. Era tão bonito ver. O rei era tanta música, tanta música!

Minha preferida era Caminhoneiro. Aquele refrão Eu sei ei ei era tão irresistível que antes mesmo que eu pudesse imaginar o sentido dos seus trocadilhos meu coração já batia como o vai e vem do pára-brisa (reparem nesse: É no acostamento dos seus braços que eu desligo meu cansaço e me abasteço desse mel. Simplesmente genial!).

Quando o tempo e eu já não brincávamos mais, descobri que meu rei, aquele que tanto admirei, não era Roberto, muito menos Carlos, mas se chamava Cícero e era meu tio.

Dividiam o mesmo quintal duas famílias – a minha e a de Cícero, que era casado com tia Leide, irmã de minha mãe, Léa. Hoje sei que Cícero era mecânico e não cantor, que mudou-se para o Ceará há quase 20 anos e que sobre ele, desde então, nunca mais se teve notícias.

Não houve equívoco, muito menos decepção. Aquele de meu mundo infantil foi e sempre será o rei, o Roberto, aquele que compôs “Leide” Laura (música que ele havia feito, claro, em homenagem à tia Leide - minha unica dúvida era: porque ele havia de chamá-la também de Laura?). Foi e sempre será o rei caminhoneiro que cantava para mim, aquele que eu sentia ser um gigante, mas quando fazia graça comigo, me colocando em seus ombros e cavalgando sem destino, não era nada mais do que um menino.

Eu vi o rei chegar. Muitas e muitas vezes eu vi o rei chegar. O rei que inventei, que cantou e canta para mim toda vez que sofro esperando que a vida seja feita de ilusão. O rei que carrega em sua voz meus tempos de criança para que eu possa me visitar e nunca duvidar que existi e que ainda existo.

O encontro com o Roberto Carlos às vesperas de completar 30 anos foi, delirando a mística do próprio rei, como um presságio, um vento bom que soprou em meu ouvido: saber viver é cuidar de si e dos outros; reverenciar a vida, a natureza e os bons encontros; dar carinho e paciência; amar, amar e ser feliz – todas essas breguices que tão fora de moda, tão bregas quanto o próprio Roberto Carlos.

Então, por toda palavra e afeto colocado de lado, abandonado num canto, amaldiçoado pelas más línguas, eu canto e canto com o rei:

Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha no ar. Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha.
Eu vi um menino correndo. Eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino...Eu pus os meus pés no riacho e acho que nunca os tirei. O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei...
Eu vi a mulher preparando outra pessoa [eu preparei]. O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga. A vida é amiga da arte. É a parte que o sol me ensinou. O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.
Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha no ar. Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha.
Eu vi muitos cabelos brancos na fonte do artista, o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são. É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão.
Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos. Estive no fundo de cada vontade encoberta, e a coisa mais certa de todas as coisas. Não vale um caminho sob o sol. E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol.

Eu vi o rei chegar. E como também canta outros dois que tanto gosto e admiro, Marina Lima e Antônio Cícero, eu vi o rei chegar e devo dizer que eu o amei.



domingo, 2 de agosto de 2009

Célia



Um céu
pra te dar.

Céu dela
Céu de cada dia
Célia.

Cem
celas
mil céus

Céus de
Célia.

Olhos no céu
Luz sedias
Luzia?
Um nome só se lia

Célia.

Selvagem vôo
Apetite
Quem disse
O céu é o limite?

Célia.

Sede de vedes
vida em tudo que é
Célia cede sobre nós
seu céu, o céu.


quinta-feira, 30 de julho de 2009

Cidade. Amor.

Cidade, um dos meus temas prediletos. Amor também.

[...] O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga
mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta esta tarde [...]

Ferreira Gullar.