terça-feira, 20 de abril de 2010

Encontros, conversações

Mais uma carta.
No dia 13 de abril Helena, querida amiga e eu participamos de uma mesa-redonda no Centro Cultural Banco do Brasil sobre Arte Urbana. O mote do debate foi a exposição Ossário, do artista plástico Alexandre Orion – que eu já conhecia e admirava de outros carnavais. Fizeram parte da mesa Alexandre, José de Souza Martins, professor da Faculdade de Filosofia da USP e Valéria Virgínia Lopes, doutora em Educação pela USP.
Na volta pra casa Helena e eu conversamos muito, coisas tão legais! Estávamos alegres pelo encontro. Mas nosso papo teve que ser interrpompido quando Helena desceu do ônibus num ponto da Rebouças. Continuei essa conversa no caminho para casa e ainda depois. Parecia que eu sobrava em mim. Em casa comecei uma carta que depois enviei a Alexandre, carta que agora compartilho - desejo de que a conversa não se acabe...

Querido Alexandre
Gostaria de conversar com você sobre o encontro de ontem. Preciso lhe dizer que gostei muito, mesmo. Me fez pensar, e isso é muito bom, especialmente nos dias que correm.
Bom, se me permite, vou contar um pouco do que vi....
No pequeno tablado vi o artista que sofre os efeitos de sua ação no mundo, como se a obra (e suas dobras) se abatessem sobre ele, inventando-o também...
Vi a professora, sutileza de gesto, delicadeza de voz, que se inquieta e se encanta com a cidade e suas questões e que guarda na dúvida um território para o pensamento (pensei que ela talvez pudesse gostar da frase: “as respostas são a má sorte das perguntas”).
Vi também o professor, que com rigor teórico e fôlego analítico, convoca-nos a pensar numa cidade ainda por fazer-se (inspirado, talvez, pelo o "ar da cidade liberta").
Tudo isso pra dizer que ontem foi muito legal, dizer da minha alegria em ouvi-lo contar de seu percurso como artista e morador dessa cidade maluca, enfim, pra dizer que me senti acompanhada!
Companhia que tem a ver com certa cumplicidade, certa crença de que a invenção é potência do homem, do homem comum, não é prerrogativa dos gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência; fé na aposta de que a cidade é o lugar no qual todos podemos e devemos afirmar nosso amor mundi, ou seja, nosso compromisso ético e generoso com o mundo que herdamos e que legaremos aqueles que virão depois de nós.
(...)
Você deve ter percebido que insisto na palavra encontro. Porque os encontros nos salvam, nos livram da solidão, do desamparo, encontros que podem ser entre pessoas, e também entre pessoas e idéias, lugares ou coisas... Por isso mesmo quero te contar uma última história (prometo que logo acabo essa carta, já me desculpando por ser tão longa...)
Quando penso na palavra encontro sempre me vem à lembrança uma conversa com meu filho Pedro, na época com cinco anos. Estávamos a caminho da escola quando ele me perguntou “Tá longe mãe?” “Não, filho, fica na próxima esquina”. Um breve silêncio e a pergunta: “O que é esquina, mãe”? “Esquina é quando duas ruas se encontram”. E, para meu espanto e encantamento, Pedro me disse: “Como os namorados, mãe”?
Pois é, segundo Pedro, “esquina são duas ruas que se encontram, enamoradas”. Então se esquina é o encontro enamorado entre dois caminhos, os encontros seriam as pontes enamoradas do pensamento (certa vez li em algum lugar, não me lembro aonde, que a mais bela ponte do mundo é distância entre um olhar e outro...)
Não importa em qual ponto da cidade estejamos, desse ou do outro lado da ponte, o mais importante é o encontro porque ele é a ponte que dá passagem – passagem ao pensamento enamorado do mundo. Lenine cantou que é desse jeito que se sai da ilha. Eu também acho.
Grata pela companhia e pelo encontro
Com admiração e carinho
Aline.
Ps.: Escandalosa, absurda, bonita, feia, egoísta, acolhedora... a cidade é tão, tão larga e tão intensa que a gente precisa mesmo de ajuda pra olhar. Ossário, Metabiótica, a conversa desdobrada disso tudo tudo me ajudaram a olhar, olhar a cidade. Para Eduardo Galeano essa é umas das funções da arte:
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
Me ajuda a olhar!"

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O Notável Caso da “Senhorita L.”


(Nada inédito, por ora. O texto que segue foi escrito em 2007, no contexto de um projeto no qual estava trabalhando no Cenpec. Previsávamos de algo que falasse da escola, especialmente da relação professor e aluno. Alguém indicou um artigo da década de 80 que apresentava resultado de uma pesquisa realizada com alunos de uma escola americana. Me incomodou, no entanto, o tom do texto: formal demais, moralista... Pedi, então, permissão para reescrevê-lo com o compromisso de que manteria a idéia principal, com a qual concordava. O resultado agradou ao grupo e a mim também).


Não amarás o próximo como a ti mesmo, porque o amor não tem limites, nem extremidades, muito menos conformação, mas fará da tua simples natureza amorosa uma enseada que salva.
Thiago de Mello

Era uma vez uma professora notável. Seu nome era Senhorita L.
A Senhorita L. dava aulas para a primeira série de uma escola pobre, de um bairro pobre, de um pobre país rico há 30 anos. Certa feita, Senhorita L. deixou bromélias, azaléias, ervas daninhas e Cão, seu cachorro-escudeiro, e resolveu sair à busca dos seus alunos.
Encontrou Carlito, um carrinho de bebê e um banco de praça. O olhar de Carlito atravessou os olhos de Senhorita L., fazendo seu corpo girar num rodopio mágico. Foi a mesma sensação de enlace e enlevo com Francis, naquela valsa há 25 anos, a única e verdadeira valsa que ela teve na vida. O olhar de Carlito fez Senhorita L. visitar sua juventude. Ela se sentia Peggy Sue...
— Senhorita L.!
Um abraço, poucas palavras. Depois de Carlito, vieram muitas outras memórias. Sempre envelhecemos e vamos envelhecer mesmo que não tenhamos vontade – ela sentia.
Carlito sabia de alguns colegas da 1ª série dos quais não perdera a amizade. Senhorita L. pediu que se reunissem para um encontro. Neste dia celebraram diferentes modos de nascer e morrer, falaram das escolhas que deram certo e das contingências que fizeram do caminho de alguns a estrada mais bela que um passo torto e perdido poderia encontrar. De todos, pode-se dizer, com certeza, tornaram-se homens e mulheres, que honravam a vida acima de tudo como homens e mulheres que honravam a mãe, o pai, a flor, a criança e o velho. Havia cuidado e generosidade neles. Alguns declaravam seu cuidado em atos de amor e gentileza. Outros doavam sua generosidade numa atenção distraída e num meio sorriso pálido que insistia em incomodar uma dureza de rosto modelado a força por vencer a vida numa luta de braços. Todos os seus alunos, habilidosos em cantar a tabuada, modestos ou brilhantes nos versos de Quintana, aprenderam a mais sutil e útil das lições: para aprender os caminhos há que se decorar muito bem os erros...
Era uma longa mesa e Senhorita L. se lembrou de uma outra que não era sua, e sim de Drummond. Uma linda poesia chamada “Mesa” que contava de um encontro de família. Drummond era um poeta generoso, que sempre a socorria quando ela já não bastava em si mesma ou se sentia pouco demais para existir...
Esta é apenas uma história de encontros. Um encontro de uma velha professora com pessoas de carne e osso que, por uma possessão infantil – como quando a gente quer agarrar e guardar uma bolha de sabão – ela continua a chamar de seus alunos. Mas de bolha de sabão só se guarda o efeito das cores e do brilho em movimento. Também por isso melhor se guarda um vôo de um pássaro do que um pássaro sem vôos, isso quem escreveu foi Antonio Cícero, outro poeta companheiro de estrada de Senhoria L.
Um dos seus alunos, também professor e pesquisador, resolveu publicar esta história dando-lhe os solenes ares da ciência. Mas a senhora L. não queria provar nada a ninguém. Só saiu em busca dela mesma, e se estendeu como um território imenso onde todas as crianças que foram suas e sempre serão, brincaram. Para cada uma delas Senhoria L. fez um país.
E a conclusão da pesquisa de seu aluno pesquisador foi:
(...) Todos os seus alunos lembravam-se dela, mesmo 20 ou 30 anos mais tarde, enquanto que os outros adultos que haviam tido outros professores na primeira série não lembravam do nome ou de qualquer coisa a respeito de seu professor.
Se as crianças são suficientemente afortunadas para começar a sua escolarização com um professor otimista, que espere que elas se saiam bem elas provavelmente se desempenharão melhor do que as crianças que foram expostas a um professor que transmite um desencorajamento e uma percepção de autodesvalorização.
Senhoria L. ficou feliz ao ler o trabalho. Afinal, Pedro havia sido seu aluno. Ficou feliz por ter sido aprovada como professora.
Em seguida chamou seu Cão para brincar um pouco.


(Livremente inspirado no livro: A Criança em Desenvolvimento - 3 edição.Helen Bee, Editora HABRA Ltda. 1986)