quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Eu vi o rei chegar



À mim, pelos 30 anos.

Eu vi o rei chegar. No Ginásio do Ibirapuera entre quase dez mil pessoas eu vi o rei chegar. O rei e suas flores que pacientemente esperavam a hora de voar nas notas de Jesus Cristo, canção que encerra o show de Roberto Carlos. Eu vi o rei chegar e Jesus também ter visto porque o rei mesmo avisou: Jesus Cristo eu estou aqui!

Eu vi o rei chegar. E ouvindo as canções que ele fez pra mim, fechei os olhos pra não ver passar o tempo. Mas, sabemos, o tempo não para, a claridade não se repete, a vida estala uma única vez. Há trinta anos que o tempo passa ao mesmo tempo em que me acompanha diligentemente sem nunca reclamar.

Quando eu estou aqui, inspirada pelo tempo e por tantas emoções eu vivo mais uma vez esse momento lindo. Gosto de viver cada aniversário como quem celebra tudo que o tempo é capaz de dar, tempo-presente que nunca se adianta nem se atrasa, mas que acima de tudo canta em coro pra que eu me convença: se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi.

Conheci o rei Roberto Carlos numa época em que o tempo era criança igualzinho a mim. A gente brincava, o tempo e eu, antes de existir o segundo, minuto, dia ou ano. Ainda não sabíamos contar. Foi assim até a chegarmos a escola, mas isso é outra música...

O rei cantava o dia todo só para mim. Naqueles tempos ele usava umas roupas engraçadas, não importava a cor, mas sempre com manchas de óleo e graxa. Vivia às voltas ou sob carcaças de antigos carros – tesouros caindo aos pedaços! Mas o rei gostava assim, era seu mundo Calhambeque bi-bi (Bi Bidhu! Bidhubidhu Bidubi!...)

Ele vestia calças que lambiam o chão. Abaixo da cintura, a calça de sarja ou brim agarrava firmemente o contorno de suas pernas até o joelho para então ir libertando sinuosamente sua boca volátil, boca dançante! Tinha um cabelo alegre que gostava de brincar - caracóis serelepes que saltitavam delicadamente quando ele caminhava. Era tão bonito ver. O rei era tanta música, tanta música!

Minha preferida era Caminhoneiro. Aquele refrão Eu sei ei ei era tão irresistível que antes mesmo que eu pudesse imaginar o sentido dos seus trocadilhos meu coração já batia como o vai e vem do pára-brisa (reparem nesse: É no acostamento dos seus braços que eu desligo meu cansaço e me abasteço desse mel. Simplesmente genial!).

Quando o tempo e eu já não brincávamos mais, descobri que meu rei, aquele que tanto admirei, não era Roberto, muito menos Carlos, mas se chamava Cícero e era meu tio.

Dividiam o mesmo quintal duas famílias – a minha e a de Cícero, que era casado com tia Leide, irmã de minha mãe, Léa. Hoje sei que Cícero era mecânico e não cantor, que mudou-se para o Ceará há quase 20 anos e que sobre ele, desde então, nunca mais se teve notícias.

Não houve equívoco, muito menos decepção. Aquele de meu mundo infantil foi e sempre será o rei, o Roberto, aquele que compôs “Leide” Laura (música que ele havia feito, claro, em homenagem à tia Leide - minha unica dúvida era: porque ele havia de chamá-la também de Laura?). Foi e sempre será o rei caminhoneiro que cantava para mim, aquele que eu sentia ser um gigante, mas quando fazia graça comigo, me colocando em seus ombros e cavalgando sem destino, não era nada mais do que um menino.

Eu vi o rei chegar. Muitas e muitas vezes eu vi o rei chegar. O rei que inventei, que cantou e canta para mim toda vez que sofro esperando que a vida seja feita de ilusão. O rei que carrega em sua voz meus tempos de criança para que eu possa me visitar e nunca duvidar que existi e que ainda existo.

O encontro com o Roberto Carlos às vesperas de completar 30 anos foi, delirando a mística do próprio rei, como um presságio, um vento bom que soprou em meu ouvido: saber viver é cuidar de si e dos outros; reverenciar a vida, a natureza e os bons encontros; dar carinho e paciência; amar, amar e ser feliz – todas essas breguices que tão fora de moda, tão bregas quanto o próprio Roberto Carlos.

Então, por toda palavra e afeto colocado de lado, abandonado num canto, amaldiçoado pelas más línguas, eu canto e canto com o rei:

Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha no ar. Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha.
Eu vi um menino correndo. Eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino...Eu pus os meus pés no riacho e acho que nunca os tirei. O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei...
Eu vi a mulher preparando outra pessoa [eu preparei]. O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga. A vida é amiga da arte. É a parte que o sol me ensinou. O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.
Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha no ar. Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha.
Eu vi muitos cabelos brancos na fonte do artista, o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são. É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão.
Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos. Estive no fundo de cada vontade encoberta, e a coisa mais certa de todas as coisas. Não vale um caminho sob o sol. E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol.

Eu vi o rei chegar. E como também canta outros dois que tanto gosto e admiro, Marina Lima e Antônio Cícero, eu vi o rei chegar e devo dizer que eu o amei.