quarta-feira, 20 de maio de 2009

Carta do amor efêmero (2005)


Primeira imagem: vento do sul, dois desconhecidos.
Vivemos como estrangeiros, num jogo de invasão consentida, desejada e apaixonada.
O flâneur não incorpora, não muda, ele passa. Com a gente não, foi diferente. Eu me deitei em sua rede, tão macia... Há em mim um tanto de outros: de cheiros, de paisagens distorcidas, sons e silêncios.
O que foi primeiro e depois? Quando nos apresentamos? Eu não sei, não tenho ordem. Eu penso muito em você porque preciso me reinventar.
Um dia escrevi que quando nasci nenhum anjo me proclamou. Minha mãe esbarrou em alguma coisa que se quebrou. Foi assim meu jeito de rebentar. E esse era um desenho trágico, pois era assim que eu o desenhava. Sempre buscando algum pedacinho de mim, escondido em algum lugar, pra eu poder me colar. Para que eu pudesse me inteirar. Ladainha do “em busca de mim”.
Reinvento-me em você que está tão fora de mim, que me diz tanto do que não preciso e ainda sim te faço meu, do meu corpo, cúmplice do meu crime de encarnar a vida.
Encarnar a própria vida – não a vida do sujeito com identidade registrada no cadastro geral de segurança pública, não o falso domínio que nos faz acreditar que temos uma vida - minha vida, a sua vida - cada qual, cada casa.
Encarnamos a nossa vida. Vida sem nome, sem dono, sem cronologia. Esse foi o “nosso acontecimento, o nosso pathos” – a gente brincou num labirinto de espelhos, tentando agarrar a própria imagem que refletida não correspondeu à imagem que guardamos de nós mesmos.
Sim, sim, nós estávamos lá. Eu me lembro. Ainda temos um nome, uma história. Mas é a forma que o desejo toma que a gente não captura. Eu sou tanto desejo, tanto desejo...
As nossas experiências, as nossas paixões pareciam dançar sempre juntas, talvez porque tenham nos afetado por vias muito similares – os dias de feira, as crianças, Roberto Carlos, o irmão que não vem mais, Fernando Pessoa, Encontros e Desencontros – e o segredo que nunca vamos saber - comida japonesa...
Onde está cada um de nós? Talvez os nossos não nos reconhecessem – os inquilinos do nosso território privado, os personagens da nossa história. Mas também nós nos estranhamos.
Nada foi premeditado. Não dá pra saber o que vamos encontrar, mas precisamos permitir que algo aconteça.
Eu não sei bem qual força roubei de você, qual força vinha de você. Uma força que me dava vontade de dançar, de brincar, de desenhar um mapa no seu corpo – e nos seus braços fazer um país... Por você eu quis me juntar diferente, com outro rosto, outro desejo, outro medo.

Eu sempre transbordo.
Tudo isso para dizer da sua beleza, a beleza que você me deu e que eu não queria abandonar, mesmo sabendo que deixá-la era a única condição para que pudesse continuar sendo minha.
Ainda me lembro de te sentir perto, sentir seu braço quase, quase se encostando ao meu - ah, essa a ternura do quase – e também da volúpia, a volúpia da entrega...
Última imagem: ainda me lembro de ver você se aproximar e se afastar de mim como as ondas daquele mar...


Tenhas essas palavras confusas como um presente meu.

Beijo-te, beijo-te.


[Escrita em 2005]
Dedico esse poema a Maju, que depois de mim é a pessoa mais chorona que conheço (a gente vive chorando em público...)

Lágrima do Sétimo Dia


Elisa Lucinda

Por favor

não me calem quando eu chorar
É atestado de ciso
é o mesmo que riso
quando eu chorar
Sou poeta e chorar é minha musculação
Exercício.
Por favor não me incomodem quando eu chorar.
É o macaco
feliz da mutação
é lavação de olho
é a costela de Adão
sentindo
sem ninguém questionar
É Deus descansando
em emoção no sétimo dia
depois de delirar.

É preciso dizer alguma coisa

Há um tempo que estou ensaiando essa carta. Não dá pra deixar de falar do meu desconforto em escrevê-la ainda neste lugar - quase um deserto, me parece.
Também não vivi, nos momentos derradeiros, junto com todos vocês como era devido, o desfecho desta história, no mínimo surpreendente, no sentido mais ignóbil e covarde da surpresa.
Não me cabe e também não quero um discurso moralizante a respeito da dureza das estruturas, nem de maliciosas arquiteturas do poder. Não que não deva ser feito, deve sim. Não sei se por incompetência, impotência ou dor nas pernas, eu não posso. Mas, como todos sabem me inclino a pensar na vida, nisso a que chamamos de vida e nos efeitos dela em nós.
Os efeitos desta história eu vivi, sobretudo, pelas palavras de outros. Não pude me despedir. Alguns de vocês eu nunca mais vi. Não sei como seria se estivesse aqui. Fiquei muito, muito triste. Por vocês e por mim. Vocês são pessoas com as quais vale a pena trabalhar. Em qualquer posto, com qualquer um de vocês, eu estaria segura. Nunca deixarei de afirmar, em voz alta, a competência e esforço dos que lutam e trabalham. E não há nenhuma espécie de nobreza ou distinção nisso, nem pra vocês e nem pra mim.
O trabalho, pra todos nós, é uma necessidade, um imperativo e não um hobby, uma distração.
É certo que entramos num jogo de forças para que nosso trabalho não se resuma à morbidez dos donos da verdade, o marasmo dos sensatos ou à leviandade dos resignados. Ousamos. Algo mais que nos faça sentido.
Pensamento e ritmo e um encantamento ordinário pelas coisas ordinárias é o que eu guardo de nós. Tenho saudades. Boa sorte. Nos vemos por aí.

Ps.: Hoje, Jordi e eu resolvemos abrir as janelas para o sol entrar. Foi um toque do Zé W que nos perguntou se gostávamos de ficar no escuro. Ninguém havia percebido, mas há semanas que nem as persianas nem as janelas eram abertas.
Abrimos as janelas. Mas ainda respiramos com dificuldade.
[Essa carta eu escrevi aos colegas que trabalharam comigo no Programa Jovens Urbanos, na ocasião do desmanche da equipe, em junho de 2008]

terça-feira, 19 de maio de 2009

Escrever

[Esse eu não me lembro mesmo quando foi. Sei apenas que é produto de uma noite em claro, no qual eu tentava domesticar meus pensamentos. Tentei a tematização. Eis "Escrever" ]


Pega de jeito põe de joelho pra te enrabar
Põe cara a cara com o deus da mentira que vai te salvar
Marca no corpo com tinta escura pra você se virar
Estica lisinho fazendo carinho pra depois te amassar
Tapa a boca prende a língua e te obriga a falar
Faz rarefeito lança em balão só pra te sufocar
Arma inteiro com fuzil ponta fina pra te ameaçar
Propõe cabimento exige conciso só pra te rebentar
Joga na lama apresenta o pecado te põe a rezar
Ri da tua cara roubando a tua cara pra te mascarar
Empurra pro palco impõe um papel pra platéia criar
Deixa no sangue uma veia de tinta pra você se borrar
Sopra com jeito faz bolha-cor só pra te estourar
Resume ladrão de um outro ladrão só pra te perdoar
Beija o pescoço com faca amolada pra você terminar.

Dia de frio

[Esse texto é de alguns anos atrás. De longe, um dos mais doídos que já escrevi.]


Tem dia bom e tem dia ruim. Dia de calor eu não gosto porque a infância não vem, fica com medo. O sol parece pai. Dia de frio chega perto, acolhe, eu abraço o frio e nem gosto de pôr blusa. Quando brincava esquecia do agasalho. Nunca mais brinquei assim, nunca mais tive felicidade assim. Felicidade que não sabia se dizer, nem podia. Não criou necessidade de ser. Por isso existia. O frio me avisa de tudo aquilo que nunca mais poderei ter, porque quem precisa querer mata a coisa querida.
Não esqueço da voz da mãe, fraquinha, inconsistente, igual a fumaça de cigarro que eu via desaparecer entre os cabelos dela. Dizia: ¾ cadê a roupa menina? Mas eu não punha. A gente corria, corria, cansava, suava depois sentava e ficava sentindo o vento gelado encostar-se à pele. O frio esquentava a gente. E daí começava tudo de novo.
O frio não tem doença, nem tempo, nem idade e é ele que me carrega pra mim, para que eu possa me visitar.
Melhor ainda é dia frio com cheiro de café. Café é um nome cheiroso. Nossa, como a minha mãe tomava café! O dia inteiro. Lembro-me bem dos cabelos dela, anelados, aspecto de palha. Enquanto costurava não se virava pra falar. - Me traz um café - ela pediu muitas e muitas vezes, de cabeça baixa, atenta ao serviço. Era a mão dela que falava comigo. Do corredor, eu olhava pro meu quarto-oficina, e enxergava três coisas: as ordens, a mão e o cigarro. Minha mãe esticava para esquerda o braço a fim de encontrar o cinzeiro. Apenas isso ela mostrava pra mim.
Mão repleta de dedos sertanejos que carregavam fracas unhas amarelas. Achava feio. Minha mãe não era bonita, parecia que tava embrulhada em papel usado, amassado.
Mas a mão não morava sozinha, abrigava sempre um inquilino esguio e indolente. Na verdade ele não era inquilino, disfarçava. Era um gigolô. E o pior é que ela gostava do cigarro. Deixava a cinza cair no cinzeiro com destreza, com leveza, com gozo. Os dois se entendiam tanto! Tinha pano escorregando, minha mãe juntava. O cigarro respeitava, não queimava não. Ele se aconchegava nela, na boca, nos dedos. O pedal da máquina pressionado, a agulha ininterrupta furando os tecidos e de repente ela parava, por um segundo, equilibrava o filtro na beiradinha do lábio fino - acho mais justo dizer no fiapo rosa-pálido - e ele portava-se lá, sereno, elegante, orgulhoso, igual artista de circo sem beleza. Vi um filme assim uma vez: o galã era o amor e o patrão da prostituta. Quando ela chegava, ele estava lá sereno, elegante, orgulhoso. A minha mãe e o cigarro se davam tão bem, conversavam muito. Não deu tempo da minha mãe aprender a me amar assim. Queria ter alguém pra poder me consumir.
Dia de frio não dá frio, só vento na barriga. E melancolia.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Metade



Que a minha loucura seja perdoada, pois metade de mim é amor e a outra metade também.

F.P.

Auto retrato: um Sopro de Vida



A mais velha de três irmãs, nasceu e cresceu em Poá cidade que se fez nos caminhos do Rio Tietê. Foi parar na faculdade por alguma insistência e na pedagogia por pura contingência - queria mesmo era estudar filosofia. Ou letras. Não trai suas ações com arrependimentos. Descobriu que não precisava de pedigree nem de permissão para estudar filosofia. Começou a xeretar. Acha absurda a fidelidade que as palavras concedem a ela – certo absurdo que é irmão de certo espanto e de um certo encanto. Tem alguns defeitos, fala demais e, em geral, vive sempre descontente com aquilo que diz – Falei demais. Que droga! De novo! Vem exercitando a escuta e o silêncio, e escolhendo melhor as guerras que quer entrar e as lutas que quer travar. Foi mãe com 21 anos. Pedro foi o nome escolhido. Vive agora o ano derradeiro a espera dos trinta. Saiu da Universidade há 8 anos – pretende voltar, mas morre de preguiça. Já trabalhou em lugares bem diferentes: shopping centers, auto-elétricos, consultórios dentários e uma ONG. Teve um notável progresso na instituição que lhe ofereceu a primeira oportunidade de trabalhar nos territórios da educação – de estagiária fotocopiadigitadora já marca suas próprias reuniões (sete anos é o tempo se que passou desde o dia em que apareci numa reunião no Cenpec sem ser convidada). Nesta história tentou não plantar cinismo nem ingratidão. Acha que agora é um momento de mudança, a vida apenas segue, do jeito que ela é. Ah, e vocês conhecem essa danadinha – a vida é mesmo fogo!

Jogo rápido: Vida que emprestaria para si: Sherazade. Um trecho: é impossível ser feliz sozinho. Um sonho: dormir nos olhos de uma criança. A mais bela tradução que faz de si mesma: Com Licença Poética, de Adélia Prado.

Quase



Você acaba de ir embora. Ainda vai demorar até o cansaço me vencer e eu finalmente me render ao sono.
Isso não é uma queixa. Gosto de me enfrentar assim – ganho ares solenes de coragem, você não acha? A verdade é que não tenho como fugir de ganhar a vida como numa luta de braços.
Mesmo sem conseguir dormir eu sonhei. Quero te contar.
Fiquei pensando no Alan e nos labirintos que ele gosta de desenhar - não haveria imagem mais apropriada para mim agora que um labirinto, cheio de espelhos...
Nesse sonho vejo uma legião de estranhos e todos sou eu – repetida, multiplicada, recortada, abreviada. Vejo milhares de rostos, sobrepostos, que juntos formam figuras distintas, borrões ou garatujas, ou paisagens disformes, com cabelos que se movem como se fossem um campo de trigo, e há girassóis também, girassóis que invento, porque eu também tenho o direito de ver aquilo que quero ver!
De vez em quando consigo capturar desse jogo um só rosto, limpo, sereno e opaco e ainda posso reconhecer: sou eu.
Tudo dura apenas um segundo, os rostos voltam a aparecer e a se misturar e a desaparecer, e se eu pudesse dizer eu diria que eles traduzem todos os sentimentos do mundo não importa os sobrenomes que carreguem: fabulosos, absurdos, cínicos, sensuais, lânguidos ou moribundos.
Se esse é o meu exagero, então, esse sonho não poderia provocar apenas um senão todos os arrebatamentos – gritos, chutes, vômitos. Desejo de rasgar e de torcer, de esmagar, de morder. De tocar.
Tocar algo macio e delicado, acariciar, devagar, e sentir cada parte, cada partícula, cada átomo. E se for um rosto o objeto do toque, e se esse rosto for o seu, ir ainda mais devagar, até ver o lugar de cada poro, de cada pêlo e só de percebê-los próximos, contá-los, exatamente, sem deixar escapar nenhum e talvez demorar ainda um tempo - a eternidade passa por nós e acena, eu respondo, com simpatia - como vai? - mas ainda não toco, chego perto, deixo calor do seu rosto vir até mim, e espero até que toda minha alma, meu corpo e minha lama se aqueçam e se esqueçam que o dia nasceu e que há vida lá fora.
Mas toda a vida está aqui, ela inteira está aqui comigo, eu quase posso tocá-la, assim como quase posso tocar você e então ela, a vida, diz: vem, não se preocupe pequena, vai ficar tudo bem, e essa ternura do quase, essa volúpia do quase me salva de toda dor e de todo cansaço.

Para meu querido, pela ternura do quase. 27 de outubro de 2008.

O bom médico

Essa é uma carta de agradecimento.

Sábado, dia 14 de março, fui atendida por você, no Pronto Socorro central da Santa Casa de São Paulo.
Eu estava com um vestido florido, de cores fortes, que gosto de usar quando o dia está quente. Tinha um inchaço no olho esquerdo; o diagnóstico foi uma celulite p... (não me lembro bem o nome).
Você recomendou que eu fizesse uma tomografia, mas me alertou sobre as dificuldades que teria que enfrentar ao tentar fazer o exame na Santa Casa. Disse-me que talvez tivesse que passar a noite esperando. Um pouco atordoada com as informações, depois da longa espera que havia enfrentado para ser atendida, disse-lhe que tentaria realizar o exame em outro hospital - pensei em falar com um tio meu que trabalha no Beneficência Portuguesa...
Saí da Santa Casa e tentei telefonar. Logo percebi que seria extremamente difícil conseguir fazer o exame aquela noite, como você havia insistido -“Faça a tomografia hoje, hoje! Não brinque com sua saúde” – você disse.
Decidi, então, voltar.
Ao entrar na sala de atendimento, a primeira sensação foi de constrangimento e vergonha. Sentia uma espécie de cumplicidade envergonhada por fazer parte de um território lastimável de insatisfações.
Impossível não compartilhar com as insatisfações expressas em olhares, gestos e palavras de pacientes, médicos e funcionários. Insatisfação e indiferença de cada um em relação ao outro e de todos em relação a um contexto de múltiplas violências.
A primeira delas tem a ver com o extremo desconforto que equipes e pacientes são obrigados a suportar. Numa sala minúscula, sem janelas, quente e abafada, médicos, enfermeiros e auxiliares acotovelavam-se, tropeçavam em doentes que denunciavam aos berros suas dores, pisavam em urina, a pouca água que distribuíam estava quente e os copos descartáveis escondidos como tesouros.
No conjunto de violências, a ineficiência dos serviços básicos também produzia suas vítimas. Recordo-me bem de uma senhora e seu filho, que aguardavam pelo resultado de um exame de sangue há seis horas – nesse momento constavam 10 horas desde o momento em que haviam pisado no hospital. Dez horas sem alimento, sem respostas, apenas pedidos de paciência. O relógio apontava 1h15 da manhã e ela dizia ao filho
- Vamos ter que dormir na estação, o último trem já se foi.

Outra violência, talvez mais sutil, mas não menos implacável: a ausência ou a precariedade das informações. Ao serem questionados sobre as longas demoras e procedimentos em geral os médicos e funcionários nos davam respostas vagas, em tom infantilizado
- É assim mesmo, tem que esperar...
- Só um instantinho e já falo com você.
Esse instantinho poderia demorar horas. Ficávamos lá, sentados ou em pé, imóveis, acompanhando com olhos cansados os passos rápidos dos médicos que andavam de um lado a outro – às vezes pareciam tão perdidos quanto nós!
Raiva, culpa, compaixão, tudo isso misturava-se em mim e minha única vontade era gritar: como era possível que as pessoas suportassem tudo aquilo! Então, parava e olhava ao meu redor: presenciava o olhar resignado dos doentes, a sisudez abatida dos médicos – seus passos e gestos firmes e palavras de desalento:
- Eu sei que é difícil, mas eu não posso fazer mais...
Eles, os médicos, os funcionários e os 40 milhões de miseráveis brasileiros não podem desistir - não há para onde fugir. E amanhã eles estarão lá, mais e mais uma vez.
Eu não fugi. Não quero fugir, nem esquecer, nem me acostumar, não quero me acovardar diante da vida!
Por favor, perdoe-me essa carta sem permissão. Mas escrevo para agradecer sua generosidade, sua acolhida atenciosa, seu cuidado competente, o respeito no modo como me olhou e falou comigo a despeito do caos que o rodeava e de todo seu cansaço.
Sei que, por seu caráter público e humanitário e, ainda, por estar situado no centro de uma das maiores cidades do mundo, o Pronto Socorro da Santa Casa acolhe uma demanda gigantesca, muito heterogênea, mas de modo geral, extremamente fragilizada subjetivamente e vulnerabilizada socialmente (difícil situação econômica, poucos anos de escolaridade, dificuldade em comunicar-se etc.).
Apesar de reconhecer a precariedade da estrutura e serviços do Pronto Socorro no atendimento dessa enorme demanda, de modo algum pretendo julgar ou culpar a Santa Casa ou à sua equipe de profissionais - estes últimos notadamente reconhecidos por sua excelência. As dificuldades que o Pronto Socorro da Santa Casa enfrenta, dia-a-dia, são efeitos de um ciclo amplo e complexo, que não cessa de reproduzir desigualdades e iniqüidades.
Nosso país ainda não conseguiu romper esse ciclo e acabar, definitivamente, com o perverso abandono e com a injusta punição que o Estado inflige aos seus cidadãos.
Para a maior parte dos brasileiros, trata-se de uma dupla punição: já penalizados pela destituição de seus direitos mais fundamentais são ainda culpados por não terem como pagar à vampiresca máquina capitalística dos planos de saúde que se alimenta da ruína da vida pública. Conhecemos bem a riqueza absurda que é produzida via pagamentos de impostos e tributos! Não há argumento que explique ou justifique, por exemplo, as péssimas condições de trabalho e de atendimento que são impostas à médicos e doentes.
Como professora do sistema público, compreendo as mazelas que os profissionais da saúde têm que enfrentar e a dor que sentimos ao ver as máquinas públicas e privadas corruptas e ineficientes devorarem nossas forças e esperanças.
Mas, como professores, médicos, policiais ou enfermeiros temos o dever de não compactuar com a reprodução dessas desigualdades. Somos filhos desse tempo, devemos gratidão pela herança que nos foi legada, e principalmente, temos um compromisso generoso com aqueles que virão depois de nós, afinal, eles herdarão o mundo que seremos capazes de criar.
Não sei se você concordará comigo, mas penso que há outra perversidade, ainda mais implacável: a condenação à invisibilidade. Se muitos cidadãos acabam se tornando invisíveis perante o Estado (menos à receita federal, é claro), muitas crianças tornam-se invisíveis perante seus pais e professores; muitos doentes sentem-se invisíveis diante de seus médicos. Nesse caso, todos nós podemos, em algum momento de nossas vidas, condenar o outro a invisibilidade. Por isso, é preciso atenção e paciência... Um autor que admiro escreveu um texto bonito sobre isso:

Nós nada somos e valemos se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos, se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e incomunicabilidade, sentido e valor. (Luís Eduardo Soares)

Querido médico, escrevi no início que essa era uma carta de agradecimento. E é por isso que agradeço, sobretudo, seu olhar. Um olhar sensível e corajoso que pelo pouco que pude testemunhar você dedica a todos aqueles que o procuram.
Espero que possa perdoar o tom de trágica denúncia, afinal nada que escrevi é novidade para você, que carrega cotidianamente o peso de uma grande responsabilidade: pôr a disposição daqueles que o procuram o que você tem de melhor num cenário que convoca de nós, quase sempre, aquilo que guardamos de pior...
Pois, a despeito de tudo, de viver como protagonista (como tantos outros!) um espetáculo de desamparo e caos eu encontrei você.
São os encontros que nos salvam. Chamem de romantismo ou ingenuidade, eu não ligo! Pois ainda guardo absoluta crença nos valores humanos, na potência criadora dos homens na transformação do mundo, na invenção de mundos melhores. Por você e com você eu pude ainda, e mais uma vez, afirmar essas apostas.
Pode-se ser um médico renomado pela competência profissional. Não acredito em competência sem paixão, e paixão não lhe falta. Mas não é apenas a competência e sim o amor pelo mundo, a generosidade diante das fraquezas humanas, a sensibilidade para ver e criar nas ruínas inspirações de encanto e belos encontros que faz a diferença. Competência, amor mundi, generosidade e sensibilidade! Tudo isso que vejo em você. Você foi e fez a diferença em mim; foi você que me salvou aquele sábado quente verão.