quinta-feira, 30 de julho de 2009

Cidade. Amor.

Cidade, um dos meus temas prediletos. Amor também.

[...] O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga
mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta esta tarde [...]

Ferreira Gullar.

Fullgás

Gosto de reler minhas cartas. Essa é de alguns anos atrás. Diferentemente da maior parte das demais que figuram nessa província, eu não a escrevi. Recebi de presente de uma paixão fugaz. Nostalgia pura. E deleite.



Que engraçado tá falando com você assim. Tantas vezes, o dia todo, pra lá pra cá, seus olhos verdes passam, tenho vontade de elogiar sua linda saia preta e... passou. Perdi mais uma chance. Aposto que uma hora vai acontecer. A gente vai se falar... Venho pra casa, abro emails quase por obrigação. Cansado, sem dizer uma frase inteira pra linda criança com quem divido casa e brincadeiras, sento. Abro e vejo o vermelho enchendo o tubo. Tudo cheio. Não consigo parar de pensar naqueles jovens. Na verdade, não penso neles, penso em mim. O que eles fazem comigo? Me sinto outra pessoa com eles, eles me fazem novo ou eu me refaço com eles... A caixa cheia, lista grande, convites, convites, cursos. Qual deles? Vou prestar pós em qual área esse ano, mais uma tentativa, aquela encheção de saco de paparicar professor, planos...

Aparece seu texto.

Vida não administrada pode existir. Apesar de eu sentir falta da sensibilidadede te ver a frente me falando.

Não sei se me esgueiro tão bem quanto você entre os escritos. Transbordo também porque não sei fazer diferente, mas falo, falo e canso. Quando canso calo. Fico calado e a minha volta as pessoas acham estranho. Perguntam. Calo. Falo pra poucos. O papel acaba tendo um lugar de confissão. Antes de tudo pra mim mesmo. Sempre releio o que escrevi, mesmo aqueles textos mais velhinhos, meio bobinhos, vira e mexe volto neles. Lembro o que sentia, como pensava. Gosto de textos pra poder pensar como quem escreveu. Você pensa de um modo agradável, eu acho. Os adjetivos gosto de torná-los em verbo, fazer da qualidade uma ação. Você gostaria muito de conhecer o Manoel de Barros. Essa prosa poética, que o Manoel também faz bastante, me leva antes de tudo a questões existenciais, subjetivas. Gostaria de escrever a prosa poética com descrição, tocar no objeto com as palavras íntimas, descrições memoriais. Tenho textos assim, são poucos, mas gosto deles...
O texto é uma fuga do meu mundo; vivo nele sozinho desde sempre. O texto, a prosa, a poesia, o que quiser, vira um expurgo, um botar-pra-fora de mim, das minhas maquinações neuróticas e inescapáveis. Como olhar o monstro de que sempre se teve medo nos olhos e saber que ele também é você e sempre estará lá... O texto é o anúncio desse outro que vive em mim e eu desconheço. Me assusto com o que sai, mas quando enfrento saio forte, não preciso nem mesmo mostrar para ninguém. Pra mim. Tenho desejo e vontade de escrever! E tenho que te dizer que é impressionante ler um texto tão sensível quanto o seu exatamente por isso: porque escrever é sofrer de um prazer solitário.
Não sei quantas vezes vou conseguir te escrever uma carta desse tamanho. Mas gostaria de te mandar coisas também. Acho que enfrento essa solidão menos que você. Me distraio com facilidade e eu sou o meu maior boicote. Mas o que quero ser? Algum escritor ou algo do gênero? Não sei, essas coisas não se falam, se fazem...
Lembrei desse trecho de um livro ao ler seu texto:

"Sou um sujeito cheio de recantos.

Os desvãos me constam.

Tem hora leio avencas.

Tem hora leio Proust

Ouço aves e beethovens.

Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

O dia vai morrer aberto em mim."

Manoel de Barros - Livro sobre nada

bjos
e

ps1: o Bola-Sete é um cara muito legal, depois de apresento.

ps2: "Tudo que não invento é falso". MB

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Mentiras sinceras

Viver não é racionar o que se conhece. O que se conhece não basta. Os riscos fazem parte da euforia. Como a dor, a alegria também pode ser insuportável. Por receio da alegria, sofremos.
(Fabrício Carpinejar)

Querido

Foi um lindo domingo. Céu limpo, calor. Havia casais passeando. Das celas laterais da grande avenida vendedores assistiam, com certa melancolia, o domingo ir lentamente se despedindo. A Rua Teodoro Sampaio estava assim, fumaça dos carros, rostos cansados, atentos, distraídos, moribundos – as cidades às vezes obrigam os olhos a desaprenderem o seu ofício... O mundo inteiro a passar por mim através das janelas dos ônibus, tão vertiginosamente que às vezes não dava mesmo para saber se tudo não passara de um engano.
Mas eu não estava enganada. Para minha sorte ou azar esse mundo era tudo o que eu não inventava. Comecei a entender a força avassaladora disso que costumeiramente chamamos de realidade. Era tanta realidade, tanta realidade que dava calafrios, tontura, medo. Às vezes caminhava em um chão de algodão, frágil e suave demais para me sustentar, às vezes num chão de lama movediça pesado, esforço demais por um simples passo.
Fechei a porta do teu prédio e fui lançada à realidade assim como quem é empurrado em uma piscina sem saber nadar... E foi assim que ela, a realidade, me mostrou o jeito que devia amar você. Amar é dar passagem. Naquele momento a vida pedia passagem.
A vida pediu passagem querido e não adiantou tentar impedir com nossas falsas blindagens. O disfarce não serviu em meu corpo – meu número é maior.
Sei que nós tentamos, sempre tentamos, construímos barragens de ilusões, mas ela, a vida real vem com tudo, passa por cima, derruba mesmo e machuca pra valer.
Vênia concedida, pode passar! Não há nada a temer nem a esperar. Hasta la vista.
Mas você deve estar se perguntando: por que não? Por que a vida chega assim e derruba nossas torres de papel?
Quer saber quais mentiras nos condenaram?
Você falava dela com a devoção de quem ora. Um amor tão fiel que desafiava a própria fé. Quando falava dela levantava sutilmente a cabeça a procura de ar – eu quase tocava a tua sede – você sabia que falar dela era como morrer afogado, por isso era preciso se acalmar para nadar até superfície e, enfim, respirar novamente, antes de se afogar de novo num mar de ausência e de presença, dela. Só dela.
Ao falar dela você sofria tanto que qualquer palavra não poderia ter outro sentido senão agonia e saudade. O cheiro morno da voz dela quando falava ao pé do teu ouvido, o corpo dela que pecava o prazer ao altar dos teus quadris, o nome dela o teu único idioma! Ela era tua única tradução. Ela e não eu. Tudo isso era ela e eu não cabia.
Mas como suportei? Simples. Inventei cenas e fiz disso tudo um filme meu, minha única segurança, meu único abrigo. E você - esse que criei - personagem patético do amante abandonado, existia somente em minha tela. Tudo que você dizia era apenas roteiro de uma obra de amor que eu inventei pra mim. Não era possível uma só palavra que não me pertencesse.
Essa foi a fantasia que me fez deixar você.
O seu pecado era diferente. Funcionava como um interstício da razão, uma fissura em sua lucidez. Pelos carinhos meus sua dor abreviava um alívio rápido, fugaz, o meu sexo era teu exílio provisório. Eu não saberia o momento exato, mas eu sentia que em algum momento, quando eu dizia teu nome era a voz dela que você ouvia soprar os teus cílios.
Tudo durava um instante: tempo de um lapso. Mas isso era ainda preferível ao contorno gelado da solidão a te abraçar nas madrugadas. Mesmo que o corpo dela que você via em mim pudesse guardar apenas a nitidez de um vulto, uma tênue alucinação, um pálido fantasma – tudo isso era ainda melhor do que assumir a responsabilidade por tua dor.
Mas ela havia partido. E eu estava lá. Isso é real.

A despeito da tua expiação de amor e do pouco que pôde me dar, você sempre foi minha vontade de alegria, desejo que me fazia ver inspiração em cada coisa: numa palavra abandonada no canto da página ou num simples presságio de que hoje vai chover...
Você que me faz querer soltar os vaga-lumes que prendi em potes, fazer aniversário de criança nos meus 30 anos e me lembrar de ser feliz enquanto ainda estou viva. (F.C)

Com imenso carinho
Aline Andrade.