sexta-feira, 26 de junho de 2009

Cartas

Cliquei em uma data qualquer no Blog do Carpinejar.
Encontro uma carta de Aline para Fernando.
Depois outra, agora dele para ela. Ele assina do teu amor.

Num dia tão triste, só, sozinha, invento a surpresa - uma carta pra mim!
Ah! Não deixo passar. Essa Aline agora sou eu e Fernando
sítio de amor verdadeiro.
Justo isso, justo eu
que sempre escrevi cartas de amor sem nenhum paradeiro...

FERNANDO

Mais estranho é ter que falar sem teus olhos a interrogar, com teu ar surpreso de quem ainda não aprendeu o nome daquela árvore ou pássaro. Eu sempre me perguntei se tua dificuldade em aprender não vinha de tua arrogância de querer ensinar. Sei lá. Não escrevo como tu, mas escrevo em ti. Não entendes minha letra, é verdade, acalento a esperança que um dia possa ler tudo o que não escrevi. Eu não sei convencer que vivi com minhas palavras, talvez eu procure tuas palavras para me julgar melhor do que sou. Me emprestas coragem, viste? Na verdade, eu não te amo, mas só sei amar o mundo através de ti. Acho que os restaurantes deveriam mudar suas alas para falantes e não-falantes. A última, com certeza, teria fila de espera. Eu aliso a aliança. Ela ainda coça, sabias? É tua mão suando na minha.

Beijos
Aline

ALINE


Tão estranho escrever uma carta para quem mora comigo. Nosso silêncio aumentou. No jantar, eu percebi que ficamos mais nos olhando do que falando. Eu pensava que isso mostrava nossa falta de assunto, nosso desinteresse, nossa absoluta distração ao que cada um faz e pensa. Reparava em casais antigos, que cortavam a verdura com lentidão e não trocavam uma única palavra. "Não quero que isso aconteça comigo", desabafava. E agora estamos mudos, garfando devagar, não incomodando a perfeição calada. Descobri que o silêncio fica mais feroz depois de casados. O silêncio é finalmente adulto. Não é negativo. Não mais olhamos; absorvemos, sugamos. Já nos antecipamos aos pensamentos um do outro, como duas fés rezando. Não quero interromper teu Deus, mesmo sofrendo com a curiosidade, mesmo desejando saber o que conversa com ele com tamanha devoção. O silêncio é uma convivência intuitiva. Pressinto tuas idéias se formando, ganhando corpo, o vinho te deixando à vontade, teus pés vestindo meus pés debaixo da mesa. Não estamos nos calando, mas falando em novo idioma. Um idioma só nosso, que não deixamos escrito para que ninguém possa destruir o segredo. O silêncio é não deixar escrito.

Do teu amor,
Fernando

Mais uma estação!

Inverno
(Adriana Calcanhoto)

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir


De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal

Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial
Há algo que jamais se esclareceu

Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei
Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só no deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois pouco antes do ocidente se assombrar.

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei

Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Será que vale um poema?

E agora?
O que fazer com essa manhã desabrochada a pássaros?
Manoel de Barros
E agora?
O que fazer com essa manhã desabrochada a monóxido de carbono?

Quem é você
Que sabe tanto o que diz?
Se sua boca só existe
No meu desenho de giz?

[Só existo por um triz]

A culpa não é sua
É desejo de verão
Em sua sede carnaval
Afoga o meu coração

Bem que eu merecia
Honras de meretriz
Pelo riso e pelo gozo
Dispensados a quem não me quis

[Será que um dia eu vou ser feliz?]

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Anonimato

Mergulhar anônimo na tessitura anônima, com a inocência de que se é feito. CL por Venenos Poderosos

Que terra lavra o teu nome?
Trigal
Raiz, pão?


Que sopro leva o teu nome?
Arado de ar
Bolha de sabão?


Que lance guarda o teu nome?
Emboscada, cilada
Escada de Escher, ilusão?


Que lugar abriga o teu nome?
Canto, muro
Vácuo, canção?


Que língua traduz o teu nome?
Fogo, fel
Fruta, facão?


Que traço risca o teu nome?
Poema sujo
Garatuja, borrão?

O nome
Afinal
Delirou seu remate
No peito um punhal
Matou-se.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Jogo da Amarelinha

Para F.
Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.
Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

(Julio Cortázar, cap. 07, Trad. Fernando de Castro Ferro)

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Um outra carta

Ontem voltando para casa escrevi, em pensamento, uma carta pra vc. Foi uma carta bonita. Ela nunca mais vai ser, apesar de ficar guardada em mim como um momento de presságio, presságio de que existo, porque às vezes duvido.
Clarice escrevia como se fosse para salvar a vida de alguém. Eu sempre repito essa frase. Eu sempre me repito e você vai perceber isso logo. Lembra daquele poeta sobre qual lhe falei, Carpinejar, amigo do Manoel de Barros? Ele sugere que decoremos os erros para aprender o caminho. Gosto de me acolher nas palavras dele, acho que já lhe falei que faço da palavra meu lugar. É no universo da escritura que extrapolo, mas minha única intenção é caber, é na palavra que me invento. Todo o resto é previsível.
O papel abriga suas confissões e as minhas também. Reli sua carta muitas vezes e fiquei surpresa porque às vezes confundia: era você mas eu me via! Registrei tantas vezes, de tantos outros jeitos as frases que vc mandou pra mim: texto é uma fuga do meu mundo; vivo nele sozinho desde sempre, texto é o anúncio desse outro que vive em mim e eu desconheço; e eu sou o meu maior boicote. Sentenças bonitas e desoladoras. Se eu acreditasse em um deus pediria um pouquinho de contentamento, porque fujo, elaboro complicadas armadilhas para me ferir (eu sou meu maior boicote) e sei que a única resposta é o silêncio, e o silêncio contém tudo.
Demorei para escrever porque não quero profanar o que começou encantado. Outro dia escrevi que o cotidiano não me desafia e quando escrevo sempre me projeto, mas minha projeção nasce condenada. Por isso não guardo. Mas posso dizer do prosaico que envolve você, da sua delicadeza atenta, da sua escuta que saboreia devagar, a fim de reconhecer o gosto.


Gostaria de ler o que essas outras coisas que você escreveu, sobre as quais você se refere na carta. Me mande. Meu dia começou mais bonito ao ler sua mensagem. Quase me acostumei a respostas mudas, quase... Saber que vc me lê e se conta para mim é um jeito de me desvencilhar. A solidão me procurando e eu rindo, escondida em seu texto, igual brincadeira de criança. No fim ela me encontra, mas não faz mal. Isso é muito pra quem já nasceu adulta.

“Há macieiras que, preferindo a beleza de seus frutos à manutenção de seu equilíbrio, se partem. São loucas.”
Não sei de quem é, mas serve.

Palavra letal

A aridez do cotidiano não me desafia. Não sei por que tenho diário.
Para falar de mim tenho que me desabitar. A minha eterna morada é quase sempre a palavra ausente.
Uma projeção cariada guarda o meu testemunho, a poesia não alcança a memória, meus olhos não amanhecem nunca.
Padeço de ânsia letral.