sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A mina


À Maju, pelo seu aniversário

Se Lula é o cara,  Maju é a mina.
E não se trata de abreviação de menina, muito menos de mulher abreviada. Mina de atalhos, a mina Maju mora entre a partida e a chegada, o não e o sim, a faca e o queijo, o beijo e o coração partido.
Garimpeiros de plantão ou sonhadores desavisados todos já pensaram seus mistérios. Diz-se que a matéria da qual é feita e que também é fonte vai nos salvar das coisas ordinárias, nos livrar da mundanice e nos tornar especiais. Esse é o segredo da mina: seu poder de metal e sua força de pedra.
Sigam seus atalhos, mas caminhem por seus próprios desvios a risco de perderem-se e de nunca encontrá-la. Mas ao encontrá-la a mina é puro deleite: energia e calor e raro esplendor precioso.

Ao chegar não se espantem demais. Reza a lenda que a mina guarda a maldição do susto: ou há susto ou surto. Disso ninguém está livre - nem a mina tampouco quem a desbrava. A potência da pedra e a raridade do metal também não se dobram ao laço, ou se abrem a faca – indica-se delicadeza no trato, sutileza no contrato. Responder ao susto com violência ou desesperar-se pode por tudo a perder.
Cuidem da mina, façam grandes investimentos, vale a pena. Apenas cautela no domínio, não comprem seguros ou cofres para poupar a exclusividade – ela com certeza secará. O que se permite preservar, duplicar, vender ou emprestar é da ordem da mina, porque só ela cabe a si mesma.






quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Eu vi o rei chegar



À mim, pelos 30 anos.

Eu vi o rei chegar. No Ginásio do Ibirapuera entre quase dez mil pessoas eu vi o rei chegar. O rei e suas flores que pacientemente esperavam a hora de voar nas notas de Jesus Cristo, canção que encerra o show de Roberto Carlos. Eu vi o rei chegar e Jesus também ter visto porque o rei mesmo avisou: Jesus Cristo eu estou aqui!

Eu vi o rei chegar. E ouvindo as canções que ele fez pra mim, fechei os olhos pra não ver passar o tempo. Mas, sabemos, o tempo não para, a claridade não se repete, a vida estala uma única vez. Há trinta anos que o tempo passa ao mesmo tempo em que me acompanha diligentemente sem nunca reclamar.

Quando eu estou aqui, inspirada pelo tempo e por tantas emoções eu vivo mais uma vez esse momento lindo. Gosto de viver cada aniversário como quem celebra tudo que o tempo é capaz de dar, tempo-presente que nunca se adianta nem se atrasa, mas que acima de tudo canta em coro pra que eu me convença: se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi.

Conheci o rei Roberto Carlos numa época em que o tempo era criança igualzinho a mim. A gente brincava, o tempo e eu, antes de existir o segundo, minuto, dia ou ano. Ainda não sabíamos contar. Foi assim até a chegarmos a escola, mas isso é outra música...

O rei cantava o dia todo só para mim. Naqueles tempos ele usava umas roupas engraçadas, não importava a cor, mas sempre com manchas de óleo e graxa. Vivia às voltas ou sob carcaças de antigos carros – tesouros caindo aos pedaços! Mas o rei gostava assim, era seu mundo Calhambeque bi-bi (Bi Bidhu! Bidhubidhu Bidubi!...)

Ele vestia calças que lambiam o chão. Abaixo da cintura, a calça de sarja ou brim agarrava firmemente o contorno de suas pernas até o joelho para então ir libertando sinuosamente sua boca volátil, boca dançante! Tinha um cabelo alegre que gostava de brincar - caracóis serelepes que saltitavam delicadamente quando ele caminhava. Era tão bonito ver. O rei era tanta música, tanta música!

Minha preferida era Caminhoneiro. Aquele refrão Eu sei ei ei era tão irresistível que antes mesmo que eu pudesse imaginar o sentido dos seus trocadilhos meu coração já batia como o vai e vem do pára-brisa (reparem nesse: É no acostamento dos seus braços que eu desligo meu cansaço e me abasteço desse mel. Simplesmente genial!).

Quando o tempo e eu já não brincávamos mais, descobri que meu rei, aquele que tanto admirei, não era Roberto, muito menos Carlos, mas se chamava Cícero e era meu tio.

Dividiam o mesmo quintal duas famílias – a minha e a de Cícero, que era casado com tia Leide, irmã de minha mãe, Léa. Hoje sei que Cícero era mecânico e não cantor, que mudou-se para o Ceará há quase 20 anos e que sobre ele, desde então, nunca mais se teve notícias.

Não houve equívoco, muito menos decepção. Aquele de meu mundo infantil foi e sempre será o rei, o Roberto, aquele que compôs “Leide” Laura (música que ele havia feito, claro, em homenagem à tia Leide - minha unica dúvida era: porque ele havia de chamá-la também de Laura?). Foi e sempre será o rei caminhoneiro que cantava para mim, aquele que eu sentia ser um gigante, mas quando fazia graça comigo, me colocando em seus ombros e cavalgando sem destino, não era nada mais do que um menino.

Eu vi o rei chegar. Muitas e muitas vezes eu vi o rei chegar. O rei que inventei, que cantou e canta para mim toda vez que sofro esperando que a vida seja feita de ilusão. O rei que carrega em sua voz meus tempos de criança para que eu possa me visitar e nunca duvidar que existi e que ainda existo.

O encontro com o Roberto Carlos às vesperas de completar 30 anos foi, delirando a mística do próprio rei, como um presságio, um vento bom que soprou em meu ouvido: saber viver é cuidar de si e dos outros; reverenciar a vida, a natureza e os bons encontros; dar carinho e paciência; amar, amar e ser feliz – todas essas breguices que tão fora de moda, tão bregas quanto o próprio Roberto Carlos.

Então, por toda palavra e afeto colocado de lado, abandonado num canto, amaldiçoado pelas más línguas, eu canto e canto com o rei:

Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha no ar. Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha.
Eu vi um menino correndo. Eu vi o tempo brincando ao redor do caminho daquele menino...Eu pus os meus pés no riacho e acho que nunca os tirei. O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei...
Eu vi a mulher preparando outra pessoa [eu preparei]. O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga. A vida é amiga da arte. É a parte que o sol me ensinou. O sol que atravessa essa estrada que nunca passou.
Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha no ar. Por isso é que eu canto, não posso parar. Por isso essa voz tamanha.
Eu vi muitos cabelos brancos na fonte do artista, o tempo não pára no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são. É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão.
Eu vi muitos homens brigando. Ouvi seus gritos. Estive no fundo de cada vontade encoberta, e a coisa mais certa de todas as coisas. Não vale um caminho sob o sol. E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol.

Eu vi o rei chegar. E como também canta outros dois que tanto gosto e admiro, Marina Lima e Antônio Cícero, eu vi o rei chegar e devo dizer que eu o amei.



domingo, 2 de agosto de 2009

Célia



Um céu
pra te dar.

Céu dela
Céu de cada dia
Célia.

Cem
celas
mil céus

Céus de
Célia.

Olhos no céu
Luz sedias
Luzia?
Um nome só se lia

Célia.

Selvagem vôo
Apetite
Quem disse
O céu é o limite?

Célia.

Sede de vedes
vida em tudo que é
Célia cede sobre nós
seu céu, o céu.


quinta-feira, 30 de julho de 2009

Cidade. Amor.

Cidade, um dos meus temas prediletos. Amor também.

[...] O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga
mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta esta tarde [...]

Ferreira Gullar.

Fullgás

Gosto de reler minhas cartas. Essa é de alguns anos atrás. Diferentemente da maior parte das demais que figuram nessa província, eu não a escrevi. Recebi de presente de uma paixão fugaz. Nostalgia pura. E deleite.



Que engraçado tá falando com você assim. Tantas vezes, o dia todo, pra lá pra cá, seus olhos verdes passam, tenho vontade de elogiar sua linda saia preta e... passou. Perdi mais uma chance. Aposto que uma hora vai acontecer. A gente vai se falar... Venho pra casa, abro emails quase por obrigação. Cansado, sem dizer uma frase inteira pra linda criança com quem divido casa e brincadeiras, sento. Abro e vejo o vermelho enchendo o tubo. Tudo cheio. Não consigo parar de pensar naqueles jovens. Na verdade, não penso neles, penso em mim. O que eles fazem comigo? Me sinto outra pessoa com eles, eles me fazem novo ou eu me refaço com eles... A caixa cheia, lista grande, convites, convites, cursos. Qual deles? Vou prestar pós em qual área esse ano, mais uma tentativa, aquela encheção de saco de paparicar professor, planos...

Aparece seu texto.

Vida não administrada pode existir. Apesar de eu sentir falta da sensibilidadede te ver a frente me falando.

Não sei se me esgueiro tão bem quanto você entre os escritos. Transbordo também porque não sei fazer diferente, mas falo, falo e canso. Quando canso calo. Fico calado e a minha volta as pessoas acham estranho. Perguntam. Calo. Falo pra poucos. O papel acaba tendo um lugar de confissão. Antes de tudo pra mim mesmo. Sempre releio o que escrevi, mesmo aqueles textos mais velhinhos, meio bobinhos, vira e mexe volto neles. Lembro o que sentia, como pensava. Gosto de textos pra poder pensar como quem escreveu. Você pensa de um modo agradável, eu acho. Os adjetivos gosto de torná-los em verbo, fazer da qualidade uma ação. Você gostaria muito de conhecer o Manoel de Barros. Essa prosa poética, que o Manoel também faz bastante, me leva antes de tudo a questões existenciais, subjetivas. Gostaria de escrever a prosa poética com descrição, tocar no objeto com as palavras íntimas, descrições memoriais. Tenho textos assim, são poucos, mas gosto deles...
O texto é uma fuga do meu mundo; vivo nele sozinho desde sempre. O texto, a prosa, a poesia, o que quiser, vira um expurgo, um botar-pra-fora de mim, das minhas maquinações neuróticas e inescapáveis. Como olhar o monstro de que sempre se teve medo nos olhos e saber que ele também é você e sempre estará lá... O texto é o anúncio desse outro que vive em mim e eu desconheço. Me assusto com o que sai, mas quando enfrento saio forte, não preciso nem mesmo mostrar para ninguém. Pra mim. Tenho desejo e vontade de escrever! E tenho que te dizer que é impressionante ler um texto tão sensível quanto o seu exatamente por isso: porque escrever é sofrer de um prazer solitário.
Não sei quantas vezes vou conseguir te escrever uma carta desse tamanho. Mas gostaria de te mandar coisas também. Acho que enfrento essa solidão menos que você. Me distraio com facilidade e eu sou o meu maior boicote. Mas o que quero ser? Algum escritor ou algo do gênero? Não sei, essas coisas não se falam, se fazem...
Lembrei desse trecho de um livro ao ler seu texto:

"Sou um sujeito cheio de recantos.

Os desvãos me constam.

Tem hora leio avencas.

Tem hora leio Proust

Ouço aves e beethovens.

Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

O dia vai morrer aberto em mim."

Manoel de Barros - Livro sobre nada

bjos
e

ps1: o Bola-Sete é um cara muito legal, depois de apresento.

ps2: "Tudo que não invento é falso". MB

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Mentiras sinceras

Viver não é racionar o que se conhece. O que se conhece não basta. Os riscos fazem parte da euforia. Como a dor, a alegria também pode ser insuportável. Por receio da alegria, sofremos.
(Fabrício Carpinejar)

Querido

Foi um lindo domingo. Céu limpo, calor. Havia casais passeando. Das celas laterais da grande avenida vendedores assistiam, com certa melancolia, o domingo ir lentamente se despedindo. A Rua Teodoro Sampaio estava assim, fumaça dos carros, rostos cansados, atentos, distraídos, moribundos – as cidades às vezes obrigam os olhos a desaprenderem o seu ofício... O mundo inteiro a passar por mim através das janelas dos ônibus, tão vertiginosamente que às vezes não dava mesmo para saber se tudo não passara de um engano.
Mas eu não estava enganada. Para minha sorte ou azar esse mundo era tudo o que eu não inventava. Comecei a entender a força avassaladora disso que costumeiramente chamamos de realidade. Era tanta realidade, tanta realidade que dava calafrios, tontura, medo. Às vezes caminhava em um chão de algodão, frágil e suave demais para me sustentar, às vezes num chão de lama movediça pesado, esforço demais por um simples passo.
Fechei a porta do teu prédio e fui lançada à realidade assim como quem é empurrado em uma piscina sem saber nadar... E foi assim que ela, a realidade, me mostrou o jeito que devia amar você. Amar é dar passagem. Naquele momento a vida pedia passagem.
A vida pediu passagem querido e não adiantou tentar impedir com nossas falsas blindagens. O disfarce não serviu em meu corpo – meu número é maior.
Sei que nós tentamos, sempre tentamos, construímos barragens de ilusões, mas ela, a vida real vem com tudo, passa por cima, derruba mesmo e machuca pra valer.
Vênia concedida, pode passar! Não há nada a temer nem a esperar. Hasta la vista.
Mas você deve estar se perguntando: por que não? Por que a vida chega assim e derruba nossas torres de papel?
Quer saber quais mentiras nos condenaram?
Você falava dela com a devoção de quem ora. Um amor tão fiel que desafiava a própria fé. Quando falava dela levantava sutilmente a cabeça a procura de ar – eu quase tocava a tua sede – você sabia que falar dela era como morrer afogado, por isso era preciso se acalmar para nadar até superfície e, enfim, respirar novamente, antes de se afogar de novo num mar de ausência e de presença, dela. Só dela.
Ao falar dela você sofria tanto que qualquer palavra não poderia ter outro sentido senão agonia e saudade. O cheiro morno da voz dela quando falava ao pé do teu ouvido, o corpo dela que pecava o prazer ao altar dos teus quadris, o nome dela o teu único idioma! Ela era tua única tradução. Ela e não eu. Tudo isso era ela e eu não cabia.
Mas como suportei? Simples. Inventei cenas e fiz disso tudo um filme meu, minha única segurança, meu único abrigo. E você - esse que criei - personagem patético do amante abandonado, existia somente em minha tela. Tudo que você dizia era apenas roteiro de uma obra de amor que eu inventei pra mim. Não era possível uma só palavra que não me pertencesse.
Essa foi a fantasia que me fez deixar você.
O seu pecado era diferente. Funcionava como um interstício da razão, uma fissura em sua lucidez. Pelos carinhos meus sua dor abreviava um alívio rápido, fugaz, o meu sexo era teu exílio provisório. Eu não saberia o momento exato, mas eu sentia que em algum momento, quando eu dizia teu nome era a voz dela que você ouvia soprar os teus cílios.
Tudo durava um instante: tempo de um lapso. Mas isso era ainda preferível ao contorno gelado da solidão a te abraçar nas madrugadas. Mesmo que o corpo dela que você via em mim pudesse guardar apenas a nitidez de um vulto, uma tênue alucinação, um pálido fantasma – tudo isso era ainda melhor do que assumir a responsabilidade por tua dor.
Mas ela havia partido. E eu estava lá. Isso é real.

A despeito da tua expiação de amor e do pouco que pôde me dar, você sempre foi minha vontade de alegria, desejo que me fazia ver inspiração em cada coisa: numa palavra abandonada no canto da página ou num simples presságio de que hoje vai chover...
Você que me faz querer soltar os vaga-lumes que prendi em potes, fazer aniversário de criança nos meus 30 anos e me lembrar de ser feliz enquanto ainda estou viva. (F.C)

Com imenso carinho
Aline Andrade.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Cartas

Cliquei em uma data qualquer no Blog do Carpinejar.
Encontro uma carta de Aline para Fernando.
Depois outra, agora dele para ela. Ele assina do teu amor.

Num dia tão triste, só, sozinha, invento a surpresa - uma carta pra mim!
Ah! Não deixo passar. Essa Aline agora sou eu e Fernando
sítio de amor verdadeiro.
Justo isso, justo eu
que sempre escrevi cartas de amor sem nenhum paradeiro...

FERNANDO

Mais estranho é ter que falar sem teus olhos a interrogar, com teu ar surpreso de quem ainda não aprendeu o nome daquela árvore ou pássaro. Eu sempre me perguntei se tua dificuldade em aprender não vinha de tua arrogância de querer ensinar. Sei lá. Não escrevo como tu, mas escrevo em ti. Não entendes minha letra, é verdade, acalento a esperança que um dia possa ler tudo o que não escrevi. Eu não sei convencer que vivi com minhas palavras, talvez eu procure tuas palavras para me julgar melhor do que sou. Me emprestas coragem, viste? Na verdade, eu não te amo, mas só sei amar o mundo através de ti. Acho que os restaurantes deveriam mudar suas alas para falantes e não-falantes. A última, com certeza, teria fila de espera. Eu aliso a aliança. Ela ainda coça, sabias? É tua mão suando na minha.

Beijos
Aline

ALINE


Tão estranho escrever uma carta para quem mora comigo. Nosso silêncio aumentou. No jantar, eu percebi que ficamos mais nos olhando do que falando. Eu pensava que isso mostrava nossa falta de assunto, nosso desinteresse, nossa absoluta distração ao que cada um faz e pensa. Reparava em casais antigos, que cortavam a verdura com lentidão e não trocavam uma única palavra. "Não quero que isso aconteça comigo", desabafava. E agora estamos mudos, garfando devagar, não incomodando a perfeição calada. Descobri que o silêncio fica mais feroz depois de casados. O silêncio é finalmente adulto. Não é negativo. Não mais olhamos; absorvemos, sugamos. Já nos antecipamos aos pensamentos um do outro, como duas fés rezando. Não quero interromper teu Deus, mesmo sofrendo com a curiosidade, mesmo desejando saber o que conversa com ele com tamanha devoção. O silêncio é uma convivência intuitiva. Pressinto tuas idéias se formando, ganhando corpo, o vinho te deixando à vontade, teus pés vestindo meus pés debaixo da mesa. Não estamos nos calando, mas falando em novo idioma. Um idioma só nosso, que não deixamos escrito para que ninguém possa destruir o segredo. O silêncio é não deixar escrito.

Do teu amor,
Fernando

Mais uma estação!

Inverno
(Adriana Calcanhoto)

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir


De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal

Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial
Há algo que jamais se esclareceu

Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei
Lá mesmo esqueci que o destino
Sempre me quis só no deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu reuniu-se à terra um instante por nós dois pouco antes do ocidente se assombrar.

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei

Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Será que vale um poema?

E agora?
O que fazer com essa manhã desabrochada a pássaros?
Manoel de Barros
E agora?
O que fazer com essa manhã desabrochada a monóxido de carbono?

Quem é você
Que sabe tanto o que diz?
Se sua boca só existe
No meu desenho de giz?

[Só existo por um triz]

A culpa não é sua
É desejo de verão
Em sua sede carnaval
Afoga o meu coração

Bem que eu merecia
Honras de meretriz
Pelo riso e pelo gozo
Dispensados a quem não me quis

[Será que um dia eu vou ser feliz?]

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Anonimato

Mergulhar anônimo na tessitura anônima, com a inocência de que se é feito. CL por Venenos Poderosos

Que terra lavra o teu nome?
Trigal
Raiz, pão?


Que sopro leva o teu nome?
Arado de ar
Bolha de sabão?


Que lance guarda o teu nome?
Emboscada, cilada
Escada de Escher, ilusão?


Que lugar abriga o teu nome?
Canto, muro
Vácuo, canção?


Que língua traduz o teu nome?
Fogo, fel
Fruta, facão?


Que traço risca o teu nome?
Poema sujo
Garatuja, borrão?

O nome
Afinal
Delirou seu remate
No peito um punhal
Matou-se.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Jogo da Amarelinha

Para F.
Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.
Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de cíclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os cíclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água.

(Julio Cortázar, cap. 07, Trad. Fernando de Castro Ferro)

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Um outra carta

Ontem voltando para casa escrevi, em pensamento, uma carta pra vc. Foi uma carta bonita. Ela nunca mais vai ser, apesar de ficar guardada em mim como um momento de presságio, presságio de que existo, porque às vezes duvido.
Clarice escrevia como se fosse para salvar a vida de alguém. Eu sempre repito essa frase. Eu sempre me repito e você vai perceber isso logo. Lembra daquele poeta sobre qual lhe falei, Carpinejar, amigo do Manoel de Barros? Ele sugere que decoremos os erros para aprender o caminho. Gosto de me acolher nas palavras dele, acho que já lhe falei que faço da palavra meu lugar. É no universo da escritura que extrapolo, mas minha única intenção é caber, é na palavra que me invento. Todo o resto é previsível.
O papel abriga suas confissões e as minhas também. Reli sua carta muitas vezes e fiquei surpresa porque às vezes confundia: era você mas eu me via! Registrei tantas vezes, de tantos outros jeitos as frases que vc mandou pra mim: texto é uma fuga do meu mundo; vivo nele sozinho desde sempre, texto é o anúncio desse outro que vive em mim e eu desconheço; e eu sou o meu maior boicote. Sentenças bonitas e desoladoras. Se eu acreditasse em um deus pediria um pouquinho de contentamento, porque fujo, elaboro complicadas armadilhas para me ferir (eu sou meu maior boicote) e sei que a única resposta é o silêncio, e o silêncio contém tudo.
Demorei para escrever porque não quero profanar o que começou encantado. Outro dia escrevi que o cotidiano não me desafia e quando escrevo sempre me projeto, mas minha projeção nasce condenada. Por isso não guardo. Mas posso dizer do prosaico que envolve você, da sua delicadeza atenta, da sua escuta que saboreia devagar, a fim de reconhecer o gosto.


Gostaria de ler o que essas outras coisas que você escreveu, sobre as quais você se refere na carta. Me mande. Meu dia começou mais bonito ao ler sua mensagem. Quase me acostumei a respostas mudas, quase... Saber que vc me lê e se conta para mim é um jeito de me desvencilhar. A solidão me procurando e eu rindo, escondida em seu texto, igual brincadeira de criança. No fim ela me encontra, mas não faz mal. Isso é muito pra quem já nasceu adulta.

“Há macieiras que, preferindo a beleza de seus frutos à manutenção de seu equilíbrio, se partem. São loucas.”
Não sei de quem é, mas serve.

Palavra letal

A aridez do cotidiano não me desafia. Não sei por que tenho diário.
Para falar de mim tenho que me desabitar. A minha eterna morada é quase sempre a palavra ausente.
Uma projeção cariada guarda o meu testemunho, a poesia não alcança a memória, meus olhos não amanhecem nunca.
Padeço de ânsia letral.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Carta do amor efêmero (2005)


Primeira imagem: vento do sul, dois desconhecidos.
Vivemos como estrangeiros, num jogo de invasão consentida, desejada e apaixonada.
O flâneur não incorpora, não muda, ele passa. Com a gente não, foi diferente. Eu me deitei em sua rede, tão macia... Há em mim um tanto de outros: de cheiros, de paisagens distorcidas, sons e silêncios.
O que foi primeiro e depois? Quando nos apresentamos? Eu não sei, não tenho ordem. Eu penso muito em você porque preciso me reinventar.
Um dia escrevi que quando nasci nenhum anjo me proclamou. Minha mãe esbarrou em alguma coisa que se quebrou. Foi assim meu jeito de rebentar. E esse era um desenho trágico, pois era assim que eu o desenhava. Sempre buscando algum pedacinho de mim, escondido em algum lugar, pra eu poder me colar. Para que eu pudesse me inteirar. Ladainha do “em busca de mim”.
Reinvento-me em você que está tão fora de mim, que me diz tanto do que não preciso e ainda sim te faço meu, do meu corpo, cúmplice do meu crime de encarnar a vida.
Encarnar a própria vida – não a vida do sujeito com identidade registrada no cadastro geral de segurança pública, não o falso domínio que nos faz acreditar que temos uma vida - minha vida, a sua vida - cada qual, cada casa.
Encarnamos a nossa vida. Vida sem nome, sem dono, sem cronologia. Esse foi o “nosso acontecimento, o nosso pathos” – a gente brincou num labirinto de espelhos, tentando agarrar a própria imagem que refletida não correspondeu à imagem que guardamos de nós mesmos.
Sim, sim, nós estávamos lá. Eu me lembro. Ainda temos um nome, uma história. Mas é a forma que o desejo toma que a gente não captura. Eu sou tanto desejo, tanto desejo...
As nossas experiências, as nossas paixões pareciam dançar sempre juntas, talvez porque tenham nos afetado por vias muito similares – os dias de feira, as crianças, Roberto Carlos, o irmão que não vem mais, Fernando Pessoa, Encontros e Desencontros – e o segredo que nunca vamos saber - comida japonesa...
Onde está cada um de nós? Talvez os nossos não nos reconhecessem – os inquilinos do nosso território privado, os personagens da nossa história. Mas também nós nos estranhamos.
Nada foi premeditado. Não dá pra saber o que vamos encontrar, mas precisamos permitir que algo aconteça.
Eu não sei bem qual força roubei de você, qual força vinha de você. Uma força que me dava vontade de dançar, de brincar, de desenhar um mapa no seu corpo – e nos seus braços fazer um país... Por você eu quis me juntar diferente, com outro rosto, outro desejo, outro medo.

Eu sempre transbordo.
Tudo isso para dizer da sua beleza, a beleza que você me deu e que eu não queria abandonar, mesmo sabendo que deixá-la era a única condição para que pudesse continuar sendo minha.
Ainda me lembro de te sentir perto, sentir seu braço quase, quase se encostando ao meu - ah, essa a ternura do quase – e também da volúpia, a volúpia da entrega...
Última imagem: ainda me lembro de ver você se aproximar e se afastar de mim como as ondas daquele mar...


Tenhas essas palavras confusas como um presente meu.

Beijo-te, beijo-te.


[Escrita em 2005]
Dedico esse poema a Maju, que depois de mim é a pessoa mais chorona que conheço (a gente vive chorando em público...)

Lágrima do Sétimo Dia


Elisa Lucinda

Por favor

não me calem quando eu chorar
É atestado de ciso
é o mesmo que riso
quando eu chorar
Sou poeta e chorar é minha musculação
Exercício.
Por favor não me incomodem quando eu chorar.
É o macaco
feliz da mutação
é lavação de olho
é a costela de Adão
sentindo
sem ninguém questionar
É Deus descansando
em emoção no sétimo dia
depois de delirar.

É preciso dizer alguma coisa

Há um tempo que estou ensaiando essa carta. Não dá pra deixar de falar do meu desconforto em escrevê-la ainda neste lugar - quase um deserto, me parece.
Também não vivi, nos momentos derradeiros, junto com todos vocês como era devido, o desfecho desta história, no mínimo surpreendente, no sentido mais ignóbil e covarde da surpresa.
Não me cabe e também não quero um discurso moralizante a respeito da dureza das estruturas, nem de maliciosas arquiteturas do poder. Não que não deva ser feito, deve sim. Não sei se por incompetência, impotência ou dor nas pernas, eu não posso. Mas, como todos sabem me inclino a pensar na vida, nisso a que chamamos de vida e nos efeitos dela em nós.
Os efeitos desta história eu vivi, sobretudo, pelas palavras de outros. Não pude me despedir. Alguns de vocês eu nunca mais vi. Não sei como seria se estivesse aqui. Fiquei muito, muito triste. Por vocês e por mim. Vocês são pessoas com as quais vale a pena trabalhar. Em qualquer posto, com qualquer um de vocês, eu estaria segura. Nunca deixarei de afirmar, em voz alta, a competência e esforço dos que lutam e trabalham. E não há nenhuma espécie de nobreza ou distinção nisso, nem pra vocês e nem pra mim.
O trabalho, pra todos nós, é uma necessidade, um imperativo e não um hobby, uma distração.
É certo que entramos num jogo de forças para que nosso trabalho não se resuma à morbidez dos donos da verdade, o marasmo dos sensatos ou à leviandade dos resignados. Ousamos. Algo mais que nos faça sentido.
Pensamento e ritmo e um encantamento ordinário pelas coisas ordinárias é o que eu guardo de nós. Tenho saudades. Boa sorte. Nos vemos por aí.

Ps.: Hoje, Jordi e eu resolvemos abrir as janelas para o sol entrar. Foi um toque do Zé W que nos perguntou se gostávamos de ficar no escuro. Ninguém havia percebido, mas há semanas que nem as persianas nem as janelas eram abertas.
Abrimos as janelas. Mas ainda respiramos com dificuldade.
[Essa carta eu escrevi aos colegas que trabalharam comigo no Programa Jovens Urbanos, na ocasião do desmanche da equipe, em junho de 2008]

terça-feira, 19 de maio de 2009

Escrever

[Esse eu não me lembro mesmo quando foi. Sei apenas que é produto de uma noite em claro, no qual eu tentava domesticar meus pensamentos. Tentei a tematização. Eis "Escrever" ]


Pega de jeito põe de joelho pra te enrabar
Põe cara a cara com o deus da mentira que vai te salvar
Marca no corpo com tinta escura pra você se virar
Estica lisinho fazendo carinho pra depois te amassar
Tapa a boca prende a língua e te obriga a falar
Faz rarefeito lança em balão só pra te sufocar
Arma inteiro com fuzil ponta fina pra te ameaçar
Propõe cabimento exige conciso só pra te rebentar
Joga na lama apresenta o pecado te põe a rezar
Ri da tua cara roubando a tua cara pra te mascarar
Empurra pro palco impõe um papel pra platéia criar
Deixa no sangue uma veia de tinta pra você se borrar
Sopra com jeito faz bolha-cor só pra te estourar
Resume ladrão de um outro ladrão só pra te perdoar
Beija o pescoço com faca amolada pra você terminar.

Dia de frio

[Esse texto é de alguns anos atrás. De longe, um dos mais doídos que já escrevi.]


Tem dia bom e tem dia ruim. Dia de calor eu não gosto porque a infância não vem, fica com medo. O sol parece pai. Dia de frio chega perto, acolhe, eu abraço o frio e nem gosto de pôr blusa. Quando brincava esquecia do agasalho. Nunca mais brinquei assim, nunca mais tive felicidade assim. Felicidade que não sabia se dizer, nem podia. Não criou necessidade de ser. Por isso existia. O frio me avisa de tudo aquilo que nunca mais poderei ter, porque quem precisa querer mata a coisa querida.
Não esqueço da voz da mãe, fraquinha, inconsistente, igual a fumaça de cigarro que eu via desaparecer entre os cabelos dela. Dizia: ¾ cadê a roupa menina? Mas eu não punha. A gente corria, corria, cansava, suava depois sentava e ficava sentindo o vento gelado encostar-se à pele. O frio esquentava a gente. E daí começava tudo de novo.
O frio não tem doença, nem tempo, nem idade e é ele que me carrega pra mim, para que eu possa me visitar.
Melhor ainda é dia frio com cheiro de café. Café é um nome cheiroso. Nossa, como a minha mãe tomava café! O dia inteiro. Lembro-me bem dos cabelos dela, anelados, aspecto de palha. Enquanto costurava não se virava pra falar. - Me traz um café - ela pediu muitas e muitas vezes, de cabeça baixa, atenta ao serviço. Era a mão dela que falava comigo. Do corredor, eu olhava pro meu quarto-oficina, e enxergava três coisas: as ordens, a mão e o cigarro. Minha mãe esticava para esquerda o braço a fim de encontrar o cinzeiro. Apenas isso ela mostrava pra mim.
Mão repleta de dedos sertanejos que carregavam fracas unhas amarelas. Achava feio. Minha mãe não era bonita, parecia que tava embrulhada em papel usado, amassado.
Mas a mão não morava sozinha, abrigava sempre um inquilino esguio e indolente. Na verdade ele não era inquilino, disfarçava. Era um gigolô. E o pior é que ela gostava do cigarro. Deixava a cinza cair no cinzeiro com destreza, com leveza, com gozo. Os dois se entendiam tanto! Tinha pano escorregando, minha mãe juntava. O cigarro respeitava, não queimava não. Ele se aconchegava nela, na boca, nos dedos. O pedal da máquina pressionado, a agulha ininterrupta furando os tecidos e de repente ela parava, por um segundo, equilibrava o filtro na beiradinha do lábio fino - acho mais justo dizer no fiapo rosa-pálido - e ele portava-se lá, sereno, elegante, orgulhoso, igual artista de circo sem beleza. Vi um filme assim uma vez: o galã era o amor e o patrão da prostituta. Quando ela chegava, ele estava lá sereno, elegante, orgulhoso. A minha mãe e o cigarro se davam tão bem, conversavam muito. Não deu tempo da minha mãe aprender a me amar assim. Queria ter alguém pra poder me consumir.
Dia de frio não dá frio, só vento na barriga. E melancolia.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Metade



Que a minha loucura seja perdoada, pois metade de mim é amor e a outra metade também.

F.P.

Auto retrato: um Sopro de Vida



A mais velha de três irmãs, nasceu e cresceu em Poá cidade que se fez nos caminhos do Rio Tietê. Foi parar na faculdade por alguma insistência e na pedagogia por pura contingência - queria mesmo era estudar filosofia. Ou letras. Não trai suas ações com arrependimentos. Descobriu que não precisava de pedigree nem de permissão para estudar filosofia. Começou a xeretar. Acha absurda a fidelidade que as palavras concedem a ela – certo absurdo que é irmão de certo espanto e de um certo encanto. Tem alguns defeitos, fala demais e, em geral, vive sempre descontente com aquilo que diz – Falei demais. Que droga! De novo! Vem exercitando a escuta e o silêncio, e escolhendo melhor as guerras que quer entrar e as lutas que quer travar. Foi mãe com 21 anos. Pedro foi o nome escolhido. Vive agora o ano derradeiro a espera dos trinta. Saiu da Universidade há 8 anos – pretende voltar, mas morre de preguiça. Já trabalhou em lugares bem diferentes: shopping centers, auto-elétricos, consultórios dentários e uma ONG. Teve um notável progresso na instituição que lhe ofereceu a primeira oportunidade de trabalhar nos territórios da educação – de estagiária fotocopiadigitadora já marca suas próprias reuniões (sete anos é o tempo se que passou desde o dia em que apareci numa reunião no Cenpec sem ser convidada). Nesta história tentou não plantar cinismo nem ingratidão. Acha que agora é um momento de mudança, a vida apenas segue, do jeito que ela é. Ah, e vocês conhecem essa danadinha – a vida é mesmo fogo!

Jogo rápido: Vida que emprestaria para si: Sherazade. Um trecho: é impossível ser feliz sozinho. Um sonho: dormir nos olhos de uma criança. A mais bela tradução que faz de si mesma: Com Licença Poética, de Adélia Prado.

Quase



Você acaba de ir embora. Ainda vai demorar até o cansaço me vencer e eu finalmente me render ao sono.
Isso não é uma queixa. Gosto de me enfrentar assim – ganho ares solenes de coragem, você não acha? A verdade é que não tenho como fugir de ganhar a vida como numa luta de braços.
Mesmo sem conseguir dormir eu sonhei. Quero te contar.
Fiquei pensando no Alan e nos labirintos que ele gosta de desenhar - não haveria imagem mais apropriada para mim agora que um labirinto, cheio de espelhos...
Nesse sonho vejo uma legião de estranhos e todos sou eu – repetida, multiplicada, recortada, abreviada. Vejo milhares de rostos, sobrepostos, que juntos formam figuras distintas, borrões ou garatujas, ou paisagens disformes, com cabelos que se movem como se fossem um campo de trigo, e há girassóis também, girassóis que invento, porque eu também tenho o direito de ver aquilo que quero ver!
De vez em quando consigo capturar desse jogo um só rosto, limpo, sereno e opaco e ainda posso reconhecer: sou eu.
Tudo dura apenas um segundo, os rostos voltam a aparecer e a se misturar e a desaparecer, e se eu pudesse dizer eu diria que eles traduzem todos os sentimentos do mundo não importa os sobrenomes que carreguem: fabulosos, absurdos, cínicos, sensuais, lânguidos ou moribundos.
Se esse é o meu exagero, então, esse sonho não poderia provocar apenas um senão todos os arrebatamentos – gritos, chutes, vômitos. Desejo de rasgar e de torcer, de esmagar, de morder. De tocar.
Tocar algo macio e delicado, acariciar, devagar, e sentir cada parte, cada partícula, cada átomo. E se for um rosto o objeto do toque, e se esse rosto for o seu, ir ainda mais devagar, até ver o lugar de cada poro, de cada pêlo e só de percebê-los próximos, contá-los, exatamente, sem deixar escapar nenhum e talvez demorar ainda um tempo - a eternidade passa por nós e acena, eu respondo, com simpatia - como vai? - mas ainda não toco, chego perto, deixo calor do seu rosto vir até mim, e espero até que toda minha alma, meu corpo e minha lama se aqueçam e se esqueçam que o dia nasceu e que há vida lá fora.
Mas toda a vida está aqui, ela inteira está aqui comigo, eu quase posso tocá-la, assim como quase posso tocar você e então ela, a vida, diz: vem, não se preocupe pequena, vai ficar tudo bem, e essa ternura do quase, essa volúpia do quase me salva de toda dor e de todo cansaço.

Para meu querido, pela ternura do quase. 27 de outubro de 2008.

O bom médico

Essa é uma carta de agradecimento.

Sábado, dia 14 de março, fui atendida por você, no Pronto Socorro central da Santa Casa de São Paulo.
Eu estava com um vestido florido, de cores fortes, que gosto de usar quando o dia está quente. Tinha um inchaço no olho esquerdo; o diagnóstico foi uma celulite p... (não me lembro bem o nome).
Você recomendou que eu fizesse uma tomografia, mas me alertou sobre as dificuldades que teria que enfrentar ao tentar fazer o exame na Santa Casa. Disse-me que talvez tivesse que passar a noite esperando. Um pouco atordoada com as informações, depois da longa espera que havia enfrentado para ser atendida, disse-lhe que tentaria realizar o exame em outro hospital - pensei em falar com um tio meu que trabalha no Beneficência Portuguesa...
Saí da Santa Casa e tentei telefonar. Logo percebi que seria extremamente difícil conseguir fazer o exame aquela noite, como você havia insistido -“Faça a tomografia hoje, hoje! Não brinque com sua saúde” – você disse.
Decidi, então, voltar.
Ao entrar na sala de atendimento, a primeira sensação foi de constrangimento e vergonha. Sentia uma espécie de cumplicidade envergonhada por fazer parte de um território lastimável de insatisfações.
Impossível não compartilhar com as insatisfações expressas em olhares, gestos e palavras de pacientes, médicos e funcionários. Insatisfação e indiferença de cada um em relação ao outro e de todos em relação a um contexto de múltiplas violências.
A primeira delas tem a ver com o extremo desconforto que equipes e pacientes são obrigados a suportar. Numa sala minúscula, sem janelas, quente e abafada, médicos, enfermeiros e auxiliares acotovelavam-se, tropeçavam em doentes que denunciavam aos berros suas dores, pisavam em urina, a pouca água que distribuíam estava quente e os copos descartáveis escondidos como tesouros.
No conjunto de violências, a ineficiência dos serviços básicos também produzia suas vítimas. Recordo-me bem de uma senhora e seu filho, que aguardavam pelo resultado de um exame de sangue há seis horas – nesse momento constavam 10 horas desde o momento em que haviam pisado no hospital. Dez horas sem alimento, sem respostas, apenas pedidos de paciência. O relógio apontava 1h15 da manhã e ela dizia ao filho
- Vamos ter que dormir na estação, o último trem já se foi.

Outra violência, talvez mais sutil, mas não menos implacável: a ausência ou a precariedade das informações. Ao serem questionados sobre as longas demoras e procedimentos em geral os médicos e funcionários nos davam respostas vagas, em tom infantilizado
- É assim mesmo, tem que esperar...
- Só um instantinho e já falo com você.
Esse instantinho poderia demorar horas. Ficávamos lá, sentados ou em pé, imóveis, acompanhando com olhos cansados os passos rápidos dos médicos que andavam de um lado a outro – às vezes pareciam tão perdidos quanto nós!
Raiva, culpa, compaixão, tudo isso misturava-se em mim e minha única vontade era gritar: como era possível que as pessoas suportassem tudo aquilo! Então, parava e olhava ao meu redor: presenciava o olhar resignado dos doentes, a sisudez abatida dos médicos – seus passos e gestos firmes e palavras de desalento:
- Eu sei que é difícil, mas eu não posso fazer mais...
Eles, os médicos, os funcionários e os 40 milhões de miseráveis brasileiros não podem desistir - não há para onde fugir. E amanhã eles estarão lá, mais e mais uma vez.
Eu não fugi. Não quero fugir, nem esquecer, nem me acostumar, não quero me acovardar diante da vida!
Por favor, perdoe-me essa carta sem permissão. Mas escrevo para agradecer sua generosidade, sua acolhida atenciosa, seu cuidado competente, o respeito no modo como me olhou e falou comigo a despeito do caos que o rodeava e de todo seu cansaço.
Sei que, por seu caráter público e humanitário e, ainda, por estar situado no centro de uma das maiores cidades do mundo, o Pronto Socorro da Santa Casa acolhe uma demanda gigantesca, muito heterogênea, mas de modo geral, extremamente fragilizada subjetivamente e vulnerabilizada socialmente (difícil situação econômica, poucos anos de escolaridade, dificuldade em comunicar-se etc.).
Apesar de reconhecer a precariedade da estrutura e serviços do Pronto Socorro no atendimento dessa enorme demanda, de modo algum pretendo julgar ou culpar a Santa Casa ou à sua equipe de profissionais - estes últimos notadamente reconhecidos por sua excelência. As dificuldades que o Pronto Socorro da Santa Casa enfrenta, dia-a-dia, são efeitos de um ciclo amplo e complexo, que não cessa de reproduzir desigualdades e iniqüidades.
Nosso país ainda não conseguiu romper esse ciclo e acabar, definitivamente, com o perverso abandono e com a injusta punição que o Estado inflige aos seus cidadãos.
Para a maior parte dos brasileiros, trata-se de uma dupla punição: já penalizados pela destituição de seus direitos mais fundamentais são ainda culpados por não terem como pagar à vampiresca máquina capitalística dos planos de saúde que se alimenta da ruína da vida pública. Conhecemos bem a riqueza absurda que é produzida via pagamentos de impostos e tributos! Não há argumento que explique ou justifique, por exemplo, as péssimas condições de trabalho e de atendimento que são impostas à médicos e doentes.
Como professora do sistema público, compreendo as mazelas que os profissionais da saúde têm que enfrentar e a dor que sentimos ao ver as máquinas públicas e privadas corruptas e ineficientes devorarem nossas forças e esperanças.
Mas, como professores, médicos, policiais ou enfermeiros temos o dever de não compactuar com a reprodução dessas desigualdades. Somos filhos desse tempo, devemos gratidão pela herança que nos foi legada, e principalmente, temos um compromisso generoso com aqueles que virão depois de nós, afinal, eles herdarão o mundo que seremos capazes de criar.
Não sei se você concordará comigo, mas penso que há outra perversidade, ainda mais implacável: a condenação à invisibilidade. Se muitos cidadãos acabam se tornando invisíveis perante o Estado (menos à receita federal, é claro), muitas crianças tornam-se invisíveis perante seus pais e professores; muitos doentes sentem-se invisíveis diante de seus médicos. Nesse caso, todos nós podemos, em algum momento de nossas vidas, condenar o outro a invisibilidade. Por isso, é preciso atenção e paciência... Um autor que admiro escreveu um texto bonito sobre isso:

Nós nada somos e valemos se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos, se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e incomunicabilidade, sentido e valor. (Luís Eduardo Soares)

Querido médico, escrevi no início que essa era uma carta de agradecimento. E é por isso que agradeço, sobretudo, seu olhar. Um olhar sensível e corajoso que pelo pouco que pude testemunhar você dedica a todos aqueles que o procuram.
Espero que possa perdoar o tom de trágica denúncia, afinal nada que escrevi é novidade para você, que carrega cotidianamente o peso de uma grande responsabilidade: pôr a disposição daqueles que o procuram o que você tem de melhor num cenário que convoca de nós, quase sempre, aquilo que guardamos de pior...
Pois, a despeito de tudo, de viver como protagonista (como tantos outros!) um espetáculo de desamparo e caos eu encontrei você.
São os encontros que nos salvam. Chamem de romantismo ou ingenuidade, eu não ligo! Pois ainda guardo absoluta crença nos valores humanos, na potência criadora dos homens na transformação do mundo, na invenção de mundos melhores. Por você e com você eu pude ainda, e mais uma vez, afirmar essas apostas.
Pode-se ser um médico renomado pela competência profissional. Não acredito em competência sem paixão, e paixão não lhe falta. Mas não é apenas a competência e sim o amor pelo mundo, a generosidade diante das fraquezas humanas, a sensibilidade para ver e criar nas ruínas inspirações de encanto e belos encontros que faz a diferença. Competência, amor mundi, generosidade e sensibilidade! Tudo isso que vejo em você. Você foi e fez a diferença em mim; foi você que me salvou aquele sábado quente verão.