quarta-feira, 14 de abril de 2010

O Notável Caso da “Senhorita L.”


(Nada inédito, por ora. O texto que segue foi escrito em 2007, no contexto de um projeto no qual estava trabalhando no Cenpec. Previsávamos de algo que falasse da escola, especialmente da relação professor e aluno. Alguém indicou um artigo da década de 80 que apresentava resultado de uma pesquisa realizada com alunos de uma escola americana. Me incomodou, no entanto, o tom do texto: formal demais, moralista... Pedi, então, permissão para reescrevê-lo com o compromisso de que manteria a idéia principal, com a qual concordava. O resultado agradou ao grupo e a mim também).


Não amarás o próximo como a ti mesmo, porque o amor não tem limites, nem extremidades, muito menos conformação, mas fará da tua simples natureza amorosa uma enseada que salva.
Thiago de Mello

Era uma vez uma professora notável. Seu nome era Senhorita L.
A Senhorita L. dava aulas para a primeira série de uma escola pobre, de um bairro pobre, de um pobre país rico há 30 anos. Certa feita, Senhorita L. deixou bromélias, azaléias, ervas daninhas e Cão, seu cachorro-escudeiro, e resolveu sair à busca dos seus alunos.
Encontrou Carlito, um carrinho de bebê e um banco de praça. O olhar de Carlito atravessou os olhos de Senhorita L., fazendo seu corpo girar num rodopio mágico. Foi a mesma sensação de enlace e enlevo com Francis, naquela valsa há 25 anos, a única e verdadeira valsa que ela teve na vida. O olhar de Carlito fez Senhorita L. visitar sua juventude. Ela se sentia Peggy Sue...
— Senhorita L.!
Um abraço, poucas palavras. Depois de Carlito, vieram muitas outras memórias. Sempre envelhecemos e vamos envelhecer mesmo que não tenhamos vontade – ela sentia.
Carlito sabia de alguns colegas da 1ª série dos quais não perdera a amizade. Senhorita L. pediu que se reunissem para um encontro. Neste dia celebraram diferentes modos de nascer e morrer, falaram das escolhas que deram certo e das contingências que fizeram do caminho de alguns a estrada mais bela que um passo torto e perdido poderia encontrar. De todos, pode-se dizer, com certeza, tornaram-se homens e mulheres, que honravam a vida acima de tudo como homens e mulheres que honravam a mãe, o pai, a flor, a criança e o velho. Havia cuidado e generosidade neles. Alguns declaravam seu cuidado em atos de amor e gentileza. Outros doavam sua generosidade numa atenção distraída e num meio sorriso pálido que insistia em incomodar uma dureza de rosto modelado a força por vencer a vida numa luta de braços. Todos os seus alunos, habilidosos em cantar a tabuada, modestos ou brilhantes nos versos de Quintana, aprenderam a mais sutil e útil das lições: para aprender os caminhos há que se decorar muito bem os erros...
Era uma longa mesa e Senhorita L. se lembrou de uma outra que não era sua, e sim de Drummond. Uma linda poesia chamada “Mesa” que contava de um encontro de família. Drummond era um poeta generoso, que sempre a socorria quando ela já não bastava em si mesma ou se sentia pouco demais para existir...
Esta é apenas uma história de encontros. Um encontro de uma velha professora com pessoas de carne e osso que, por uma possessão infantil – como quando a gente quer agarrar e guardar uma bolha de sabão – ela continua a chamar de seus alunos. Mas de bolha de sabão só se guarda o efeito das cores e do brilho em movimento. Também por isso melhor se guarda um vôo de um pássaro do que um pássaro sem vôos, isso quem escreveu foi Antonio Cícero, outro poeta companheiro de estrada de Senhoria L.
Um dos seus alunos, também professor e pesquisador, resolveu publicar esta história dando-lhe os solenes ares da ciência. Mas a senhora L. não queria provar nada a ninguém. Só saiu em busca dela mesma, e se estendeu como um território imenso onde todas as crianças que foram suas e sempre serão, brincaram. Para cada uma delas Senhoria L. fez um país.
E a conclusão da pesquisa de seu aluno pesquisador foi:
(...) Todos os seus alunos lembravam-se dela, mesmo 20 ou 30 anos mais tarde, enquanto que os outros adultos que haviam tido outros professores na primeira série não lembravam do nome ou de qualquer coisa a respeito de seu professor.
Se as crianças são suficientemente afortunadas para começar a sua escolarização com um professor otimista, que espere que elas se saiam bem elas provavelmente se desempenharão melhor do que as crianças que foram expostas a um professor que transmite um desencorajamento e uma percepção de autodesvalorização.
Senhoria L. ficou feliz ao ler o trabalho. Afinal, Pedro havia sido seu aluno. Ficou feliz por ter sido aprovada como professora.
Em seguida chamou seu Cão para brincar um pouco.


(Livremente inspirado no livro: A Criança em Desenvolvimento - 3 edição.Helen Bee, Editora HABRA Ltda. 1986)

Um comentário:

  1. Senhorita L. parece uma personagem de letra de música da fase psicodélica dos Beatles. Sim, ela não é daqui e de nenhum lugar que eu tenha ido.Mas sinto saudade dela mesmo assim, saudades da aula que ela não me deu, saudades dos comentários que ela fazia, que me faziam parar de pensar tanto, de sofrer tanto, de sossegar o coração e aceitar o maravilhoso fato de ser único no universo e de me contentar com a companhia de um cão e olhe lá.

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