segunda-feira, 13 de julho de 2009

Mentiras sinceras

Viver não é racionar o que se conhece. O que se conhece não basta. Os riscos fazem parte da euforia. Como a dor, a alegria também pode ser insuportável. Por receio da alegria, sofremos.
(Fabrício Carpinejar)

Querido

Foi um lindo domingo. Céu limpo, calor. Havia casais passeando. Das celas laterais da grande avenida vendedores assistiam, com certa melancolia, o domingo ir lentamente se despedindo. A Rua Teodoro Sampaio estava assim, fumaça dos carros, rostos cansados, atentos, distraídos, moribundos – as cidades às vezes obrigam os olhos a desaprenderem o seu ofício... O mundo inteiro a passar por mim através das janelas dos ônibus, tão vertiginosamente que às vezes não dava mesmo para saber se tudo não passara de um engano.
Mas eu não estava enganada. Para minha sorte ou azar esse mundo era tudo o que eu não inventava. Comecei a entender a força avassaladora disso que costumeiramente chamamos de realidade. Era tanta realidade, tanta realidade que dava calafrios, tontura, medo. Às vezes caminhava em um chão de algodão, frágil e suave demais para me sustentar, às vezes num chão de lama movediça pesado, esforço demais por um simples passo.
Fechei a porta do teu prédio e fui lançada à realidade assim como quem é empurrado em uma piscina sem saber nadar... E foi assim que ela, a realidade, me mostrou o jeito que devia amar você. Amar é dar passagem. Naquele momento a vida pedia passagem.
A vida pediu passagem querido e não adiantou tentar impedir com nossas falsas blindagens. O disfarce não serviu em meu corpo – meu número é maior.
Sei que nós tentamos, sempre tentamos, construímos barragens de ilusões, mas ela, a vida real vem com tudo, passa por cima, derruba mesmo e machuca pra valer.
Vênia concedida, pode passar! Não há nada a temer nem a esperar. Hasta la vista.
Mas você deve estar se perguntando: por que não? Por que a vida chega assim e derruba nossas torres de papel?
Quer saber quais mentiras nos condenaram?
Você falava dela com a devoção de quem ora. Um amor tão fiel que desafiava a própria fé. Quando falava dela levantava sutilmente a cabeça a procura de ar – eu quase tocava a tua sede – você sabia que falar dela era como morrer afogado, por isso era preciso se acalmar para nadar até superfície e, enfim, respirar novamente, antes de se afogar de novo num mar de ausência e de presença, dela. Só dela.
Ao falar dela você sofria tanto que qualquer palavra não poderia ter outro sentido senão agonia e saudade. O cheiro morno da voz dela quando falava ao pé do teu ouvido, o corpo dela que pecava o prazer ao altar dos teus quadris, o nome dela o teu único idioma! Ela era tua única tradução. Ela e não eu. Tudo isso era ela e eu não cabia.
Mas como suportei? Simples. Inventei cenas e fiz disso tudo um filme meu, minha única segurança, meu único abrigo. E você - esse que criei - personagem patético do amante abandonado, existia somente em minha tela. Tudo que você dizia era apenas roteiro de uma obra de amor que eu inventei pra mim. Não era possível uma só palavra que não me pertencesse.
Essa foi a fantasia que me fez deixar você.
O seu pecado era diferente. Funcionava como um interstício da razão, uma fissura em sua lucidez. Pelos carinhos meus sua dor abreviava um alívio rápido, fugaz, o meu sexo era teu exílio provisório. Eu não saberia o momento exato, mas eu sentia que em algum momento, quando eu dizia teu nome era a voz dela que você ouvia soprar os teus cílios.
Tudo durava um instante: tempo de um lapso. Mas isso era ainda preferível ao contorno gelado da solidão a te abraçar nas madrugadas. Mesmo que o corpo dela que você via em mim pudesse guardar apenas a nitidez de um vulto, uma tênue alucinação, um pálido fantasma – tudo isso era ainda melhor do que assumir a responsabilidade por tua dor.
Mas ela havia partido. E eu estava lá. Isso é real.

A despeito da tua expiação de amor e do pouco que pôde me dar, você sempre foi minha vontade de alegria, desejo que me fazia ver inspiração em cada coisa: numa palavra abandonada no canto da página ou num simples presságio de que hoje vai chover...
Você que me faz querer soltar os vaga-lumes que prendi em potes, fazer aniversário de criança nos meus 30 anos e me lembrar de ser feliz enquanto ainda estou viva. (F.C)

Com imenso carinho
Aline Andrade.

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