quinta-feira, 30 de julho de 2009

Fullgás

Gosto de reler minhas cartas. Essa é de alguns anos atrás. Diferentemente da maior parte das demais que figuram nessa província, eu não a escrevi. Recebi de presente de uma paixão fugaz. Nostalgia pura. E deleite.



Que engraçado tá falando com você assim. Tantas vezes, o dia todo, pra lá pra cá, seus olhos verdes passam, tenho vontade de elogiar sua linda saia preta e... passou. Perdi mais uma chance. Aposto que uma hora vai acontecer. A gente vai se falar... Venho pra casa, abro emails quase por obrigação. Cansado, sem dizer uma frase inteira pra linda criança com quem divido casa e brincadeiras, sento. Abro e vejo o vermelho enchendo o tubo. Tudo cheio. Não consigo parar de pensar naqueles jovens. Na verdade, não penso neles, penso em mim. O que eles fazem comigo? Me sinto outra pessoa com eles, eles me fazem novo ou eu me refaço com eles... A caixa cheia, lista grande, convites, convites, cursos. Qual deles? Vou prestar pós em qual área esse ano, mais uma tentativa, aquela encheção de saco de paparicar professor, planos...

Aparece seu texto.

Vida não administrada pode existir. Apesar de eu sentir falta da sensibilidadede te ver a frente me falando.

Não sei se me esgueiro tão bem quanto você entre os escritos. Transbordo também porque não sei fazer diferente, mas falo, falo e canso. Quando canso calo. Fico calado e a minha volta as pessoas acham estranho. Perguntam. Calo. Falo pra poucos. O papel acaba tendo um lugar de confissão. Antes de tudo pra mim mesmo. Sempre releio o que escrevi, mesmo aqueles textos mais velhinhos, meio bobinhos, vira e mexe volto neles. Lembro o que sentia, como pensava. Gosto de textos pra poder pensar como quem escreveu. Você pensa de um modo agradável, eu acho. Os adjetivos gosto de torná-los em verbo, fazer da qualidade uma ação. Você gostaria muito de conhecer o Manoel de Barros. Essa prosa poética, que o Manoel também faz bastante, me leva antes de tudo a questões existenciais, subjetivas. Gostaria de escrever a prosa poética com descrição, tocar no objeto com as palavras íntimas, descrições memoriais. Tenho textos assim, são poucos, mas gosto deles...
O texto é uma fuga do meu mundo; vivo nele sozinho desde sempre. O texto, a prosa, a poesia, o que quiser, vira um expurgo, um botar-pra-fora de mim, das minhas maquinações neuróticas e inescapáveis. Como olhar o monstro de que sempre se teve medo nos olhos e saber que ele também é você e sempre estará lá... O texto é o anúncio desse outro que vive em mim e eu desconheço. Me assusto com o que sai, mas quando enfrento saio forte, não preciso nem mesmo mostrar para ninguém. Pra mim. Tenho desejo e vontade de escrever! E tenho que te dizer que é impressionante ler um texto tão sensível quanto o seu exatamente por isso: porque escrever é sofrer de um prazer solitário.
Não sei quantas vezes vou conseguir te escrever uma carta desse tamanho. Mas gostaria de te mandar coisas também. Acho que enfrento essa solidão menos que você. Me distraio com facilidade e eu sou o meu maior boicote. Mas o que quero ser? Algum escritor ou algo do gênero? Não sei, essas coisas não se falam, se fazem...
Lembrei desse trecho de um livro ao ler seu texto:

"Sou um sujeito cheio de recantos.

Os desvãos me constam.

Tem hora leio avencas.

Tem hora leio Proust

Ouço aves e beethovens.

Gosto de Bola-Sete e Charles Chaplin.

O dia vai morrer aberto em mim."

Manoel de Barros - Livro sobre nada

bjos
e

ps1: o Bola-Sete é um cara muito legal, depois de apresento.

ps2: "Tudo que não invento é falso". MB

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