sexta-feira, 15 de maio de 2009

Quase



Você acaba de ir embora. Ainda vai demorar até o cansaço me vencer e eu finalmente me render ao sono.
Isso não é uma queixa. Gosto de me enfrentar assim – ganho ares solenes de coragem, você não acha? A verdade é que não tenho como fugir de ganhar a vida como numa luta de braços.
Mesmo sem conseguir dormir eu sonhei. Quero te contar.
Fiquei pensando no Alan e nos labirintos que ele gosta de desenhar - não haveria imagem mais apropriada para mim agora que um labirinto, cheio de espelhos...
Nesse sonho vejo uma legião de estranhos e todos sou eu – repetida, multiplicada, recortada, abreviada. Vejo milhares de rostos, sobrepostos, que juntos formam figuras distintas, borrões ou garatujas, ou paisagens disformes, com cabelos que se movem como se fossem um campo de trigo, e há girassóis também, girassóis que invento, porque eu também tenho o direito de ver aquilo que quero ver!
De vez em quando consigo capturar desse jogo um só rosto, limpo, sereno e opaco e ainda posso reconhecer: sou eu.
Tudo dura apenas um segundo, os rostos voltam a aparecer e a se misturar e a desaparecer, e se eu pudesse dizer eu diria que eles traduzem todos os sentimentos do mundo não importa os sobrenomes que carreguem: fabulosos, absurdos, cínicos, sensuais, lânguidos ou moribundos.
Se esse é o meu exagero, então, esse sonho não poderia provocar apenas um senão todos os arrebatamentos – gritos, chutes, vômitos. Desejo de rasgar e de torcer, de esmagar, de morder. De tocar.
Tocar algo macio e delicado, acariciar, devagar, e sentir cada parte, cada partícula, cada átomo. E se for um rosto o objeto do toque, e se esse rosto for o seu, ir ainda mais devagar, até ver o lugar de cada poro, de cada pêlo e só de percebê-los próximos, contá-los, exatamente, sem deixar escapar nenhum e talvez demorar ainda um tempo - a eternidade passa por nós e acena, eu respondo, com simpatia - como vai? - mas ainda não toco, chego perto, deixo calor do seu rosto vir até mim, e espero até que toda minha alma, meu corpo e minha lama se aqueçam e se esqueçam que o dia nasceu e que há vida lá fora.
Mas toda a vida está aqui, ela inteira está aqui comigo, eu quase posso tocá-la, assim como quase posso tocar você e então ela, a vida, diz: vem, não se preocupe pequena, vai ficar tudo bem, e essa ternura do quase, essa volúpia do quase me salva de toda dor e de todo cansaço.

Para meu querido, pela ternura do quase. 27 de outubro de 2008.

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