terça-feira, 19 de maio de 2009

Dia de frio

[Esse texto é de alguns anos atrás. De longe, um dos mais doídos que já escrevi.]


Tem dia bom e tem dia ruim. Dia de calor eu não gosto porque a infância não vem, fica com medo. O sol parece pai. Dia de frio chega perto, acolhe, eu abraço o frio e nem gosto de pôr blusa. Quando brincava esquecia do agasalho. Nunca mais brinquei assim, nunca mais tive felicidade assim. Felicidade que não sabia se dizer, nem podia. Não criou necessidade de ser. Por isso existia. O frio me avisa de tudo aquilo que nunca mais poderei ter, porque quem precisa querer mata a coisa querida.
Não esqueço da voz da mãe, fraquinha, inconsistente, igual a fumaça de cigarro que eu via desaparecer entre os cabelos dela. Dizia: ¾ cadê a roupa menina? Mas eu não punha. A gente corria, corria, cansava, suava depois sentava e ficava sentindo o vento gelado encostar-se à pele. O frio esquentava a gente. E daí começava tudo de novo.
O frio não tem doença, nem tempo, nem idade e é ele que me carrega pra mim, para que eu possa me visitar.
Melhor ainda é dia frio com cheiro de café. Café é um nome cheiroso. Nossa, como a minha mãe tomava café! O dia inteiro. Lembro-me bem dos cabelos dela, anelados, aspecto de palha. Enquanto costurava não se virava pra falar. - Me traz um café - ela pediu muitas e muitas vezes, de cabeça baixa, atenta ao serviço. Era a mão dela que falava comigo. Do corredor, eu olhava pro meu quarto-oficina, e enxergava três coisas: as ordens, a mão e o cigarro. Minha mãe esticava para esquerda o braço a fim de encontrar o cinzeiro. Apenas isso ela mostrava pra mim.
Mão repleta de dedos sertanejos que carregavam fracas unhas amarelas. Achava feio. Minha mãe não era bonita, parecia que tava embrulhada em papel usado, amassado.
Mas a mão não morava sozinha, abrigava sempre um inquilino esguio e indolente. Na verdade ele não era inquilino, disfarçava. Era um gigolô. E o pior é que ela gostava do cigarro. Deixava a cinza cair no cinzeiro com destreza, com leveza, com gozo. Os dois se entendiam tanto! Tinha pano escorregando, minha mãe juntava. O cigarro respeitava, não queimava não. Ele se aconchegava nela, na boca, nos dedos. O pedal da máquina pressionado, a agulha ininterrupta furando os tecidos e de repente ela parava, por um segundo, equilibrava o filtro na beiradinha do lábio fino - acho mais justo dizer no fiapo rosa-pálido - e ele portava-se lá, sereno, elegante, orgulhoso, igual artista de circo sem beleza. Vi um filme assim uma vez: o galã era o amor e o patrão da prostituta. Quando ela chegava, ele estava lá sereno, elegante, orgulhoso. A minha mãe e o cigarro se davam tão bem, conversavam muito. Não deu tempo da minha mãe aprender a me amar assim. Queria ter alguém pra poder me consumir.
Dia de frio não dá frio, só vento na barriga. E melancolia.

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