sexta-feira, 15 de maio de 2009

O bom médico

Essa é uma carta de agradecimento.

Sábado, dia 14 de março, fui atendida por você, no Pronto Socorro central da Santa Casa de São Paulo.
Eu estava com um vestido florido, de cores fortes, que gosto de usar quando o dia está quente. Tinha um inchaço no olho esquerdo; o diagnóstico foi uma celulite p... (não me lembro bem o nome).
Você recomendou que eu fizesse uma tomografia, mas me alertou sobre as dificuldades que teria que enfrentar ao tentar fazer o exame na Santa Casa. Disse-me que talvez tivesse que passar a noite esperando. Um pouco atordoada com as informações, depois da longa espera que havia enfrentado para ser atendida, disse-lhe que tentaria realizar o exame em outro hospital - pensei em falar com um tio meu que trabalha no Beneficência Portuguesa...
Saí da Santa Casa e tentei telefonar. Logo percebi que seria extremamente difícil conseguir fazer o exame aquela noite, como você havia insistido -“Faça a tomografia hoje, hoje! Não brinque com sua saúde” – você disse.
Decidi, então, voltar.
Ao entrar na sala de atendimento, a primeira sensação foi de constrangimento e vergonha. Sentia uma espécie de cumplicidade envergonhada por fazer parte de um território lastimável de insatisfações.
Impossível não compartilhar com as insatisfações expressas em olhares, gestos e palavras de pacientes, médicos e funcionários. Insatisfação e indiferença de cada um em relação ao outro e de todos em relação a um contexto de múltiplas violências.
A primeira delas tem a ver com o extremo desconforto que equipes e pacientes são obrigados a suportar. Numa sala minúscula, sem janelas, quente e abafada, médicos, enfermeiros e auxiliares acotovelavam-se, tropeçavam em doentes que denunciavam aos berros suas dores, pisavam em urina, a pouca água que distribuíam estava quente e os copos descartáveis escondidos como tesouros.
No conjunto de violências, a ineficiência dos serviços básicos também produzia suas vítimas. Recordo-me bem de uma senhora e seu filho, que aguardavam pelo resultado de um exame de sangue há seis horas – nesse momento constavam 10 horas desde o momento em que haviam pisado no hospital. Dez horas sem alimento, sem respostas, apenas pedidos de paciência. O relógio apontava 1h15 da manhã e ela dizia ao filho
- Vamos ter que dormir na estação, o último trem já se foi.

Outra violência, talvez mais sutil, mas não menos implacável: a ausência ou a precariedade das informações. Ao serem questionados sobre as longas demoras e procedimentos em geral os médicos e funcionários nos davam respostas vagas, em tom infantilizado
- É assim mesmo, tem que esperar...
- Só um instantinho e já falo com você.
Esse instantinho poderia demorar horas. Ficávamos lá, sentados ou em pé, imóveis, acompanhando com olhos cansados os passos rápidos dos médicos que andavam de um lado a outro – às vezes pareciam tão perdidos quanto nós!
Raiva, culpa, compaixão, tudo isso misturava-se em mim e minha única vontade era gritar: como era possível que as pessoas suportassem tudo aquilo! Então, parava e olhava ao meu redor: presenciava o olhar resignado dos doentes, a sisudez abatida dos médicos – seus passos e gestos firmes e palavras de desalento:
- Eu sei que é difícil, mas eu não posso fazer mais...
Eles, os médicos, os funcionários e os 40 milhões de miseráveis brasileiros não podem desistir - não há para onde fugir. E amanhã eles estarão lá, mais e mais uma vez.
Eu não fugi. Não quero fugir, nem esquecer, nem me acostumar, não quero me acovardar diante da vida!
Por favor, perdoe-me essa carta sem permissão. Mas escrevo para agradecer sua generosidade, sua acolhida atenciosa, seu cuidado competente, o respeito no modo como me olhou e falou comigo a despeito do caos que o rodeava e de todo seu cansaço.
Sei que, por seu caráter público e humanitário e, ainda, por estar situado no centro de uma das maiores cidades do mundo, o Pronto Socorro da Santa Casa acolhe uma demanda gigantesca, muito heterogênea, mas de modo geral, extremamente fragilizada subjetivamente e vulnerabilizada socialmente (difícil situação econômica, poucos anos de escolaridade, dificuldade em comunicar-se etc.).
Apesar de reconhecer a precariedade da estrutura e serviços do Pronto Socorro no atendimento dessa enorme demanda, de modo algum pretendo julgar ou culpar a Santa Casa ou à sua equipe de profissionais - estes últimos notadamente reconhecidos por sua excelência. As dificuldades que o Pronto Socorro da Santa Casa enfrenta, dia-a-dia, são efeitos de um ciclo amplo e complexo, que não cessa de reproduzir desigualdades e iniqüidades.
Nosso país ainda não conseguiu romper esse ciclo e acabar, definitivamente, com o perverso abandono e com a injusta punição que o Estado inflige aos seus cidadãos.
Para a maior parte dos brasileiros, trata-se de uma dupla punição: já penalizados pela destituição de seus direitos mais fundamentais são ainda culpados por não terem como pagar à vampiresca máquina capitalística dos planos de saúde que se alimenta da ruína da vida pública. Conhecemos bem a riqueza absurda que é produzida via pagamentos de impostos e tributos! Não há argumento que explique ou justifique, por exemplo, as péssimas condições de trabalho e de atendimento que são impostas à médicos e doentes.
Como professora do sistema público, compreendo as mazelas que os profissionais da saúde têm que enfrentar e a dor que sentimos ao ver as máquinas públicas e privadas corruptas e ineficientes devorarem nossas forças e esperanças.
Mas, como professores, médicos, policiais ou enfermeiros temos o dever de não compactuar com a reprodução dessas desigualdades. Somos filhos desse tempo, devemos gratidão pela herança que nos foi legada, e principalmente, temos um compromisso generoso com aqueles que virão depois de nós, afinal, eles herdarão o mundo que seremos capazes de criar.
Não sei se você concordará comigo, mas penso que há outra perversidade, ainda mais implacável: a condenação à invisibilidade. Se muitos cidadãos acabam se tornando invisíveis perante o Estado (menos à receita federal, é claro), muitas crianças tornam-se invisíveis perante seus pais e professores; muitos doentes sentem-se invisíveis diante de seus médicos. Nesse caso, todos nós podemos, em algum momento de nossas vidas, condenar o outro a invisibilidade. Por isso, é preciso atenção e paciência... Um autor que admiro escreveu um texto bonito sobre isso:

Nós nada somos e valemos se não contamos com o olhar alheio acolhedor, se não somos vistos, se o olhar do outro não nos recolhe e salva da invisibilidade – invisibilidade que nos anula e que é sinônimo, portanto, de solidão e incomunicabilidade, sentido e valor. (Luís Eduardo Soares)

Querido médico, escrevi no início que essa era uma carta de agradecimento. E é por isso que agradeço, sobretudo, seu olhar. Um olhar sensível e corajoso que pelo pouco que pude testemunhar você dedica a todos aqueles que o procuram.
Espero que possa perdoar o tom de trágica denúncia, afinal nada que escrevi é novidade para você, que carrega cotidianamente o peso de uma grande responsabilidade: pôr a disposição daqueles que o procuram o que você tem de melhor num cenário que convoca de nós, quase sempre, aquilo que guardamos de pior...
Pois, a despeito de tudo, de viver como protagonista (como tantos outros!) um espetáculo de desamparo e caos eu encontrei você.
São os encontros que nos salvam. Chamem de romantismo ou ingenuidade, eu não ligo! Pois ainda guardo absoluta crença nos valores humanos, na potência criadora dos homens na transformação do mundo, na invenção de mundos melhores. Por você e com você eu pude ainda, e mais uma vez, afirmar essas apostas.
Pode-se ser um médico renomado pela competência profissional. Não acredito em competência sem paixão, e paixão não lhe falta. Mas não é apenas a competência e sim o amor pelo mundo, a generosidade diante das fraquezas humanas, a sensibilidade para ver e criar nas ruínas inspirações de encanto e belos encontros que faz a diferença. Competência, amor mundi, generosidade e sensibilidade! Tudo isso que vejo em você. Você foi e fez a diferença em mim; foi você que me salvou aquele sábado quente verão.




Um comentário:

  1. ADOREI SEU DESABAFO O MUNDO PRECISA DE INDIVIDUOS COMO VOCÊ.SAÚDE,EDUCAÇÃO,E MORADIA,AINDA SÃO INVISIVEIS, NECESSITAM DE OLHARES ACOLHEDORES E HUMANITÁRIOS PARA UMA TRANSFORMAÇÃO DE IGUALDADE SOCIAL,CULTURAL.DIREITO IGUAL PARA TODOS!...

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